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Sinopse

No início do século XX, um camponês dominicano desaparece num furacão e é considerado morto pelos familiares. No entanto, ele retorna muito tempo depois, dizendo ter visitado os céus. Papá Libório passa a ser considerado um profeta. Ele se diz incumbido da missão de combater o mal, curar os enfermos e espalhar bons exemplos. Fuzileiros navais dos EUA ameaçam a comunidade de seguidores que gradativamente se reúne em torno desse homem.

Crítica

Ao evocar a trajetória de uma personalidade histórica famosa na República Dominicana, o diretor Nino Martínez Sosa poderia buscar as provas de sua existência, os dados e comprovações de sua passagem por cidades, além dos encontros com personalidades nacionais. Ora, o cineasta opta por uma abordagem independente dos fatos. Em primeiro lugar, ele assume a postura de quem, ao tratar de um líder messiânico que prometia curar os mortos, não pretende dissociar o homem do mito. Pelo contrário, Libório (2021) oferece um retrato multifacetado. Ele realmente morreu no furacão, foi aos céus e ressuscitou, como um messias escolhido por Deus? Caso contrário, onde permaneceu durante tanto tempo de ausência, enquanto os familiares choravam sua morte presumida? Ele trouxe um bebê natimorto de volta à vida, ou o respiro inesperado do recém-nascido teria causas naturais? Foi um profeta enlouquecido, um revolucionário de esquerda, um charlatão? Todas estas possibilidades são fomentadas pelo roteiro. Poucas biografias adquirem um caráter tão ambíguo, afastando o diretor da postura de admirador: Sosa privilegia o impacto exercido pelo protagonista nas pessoas ao redor.

Deste modo, a ficção se estrutura em torno de apenas sete cenas, ocupando os 99 minutos de duração. A primeira delas constitui a única a adotar o ponto de vista de Papá Libório (Vicente Santos), preso entre a tempestade, mergulhando numa gruta secreta onde encontra animais esperando para ser libertados (Um delírio? Uma representação dos céus? Uma evocação popular da mitologia dominicana?). Passada esta apresentação, mais misteriosa do que esclarecedora, acompanhamos o retorno do desaparecido à vida cotidiana pelo ponto de vista de seis pessoas que o acompanharam de perto: o filho, a esposa, o braço direito nas lutas populares, a jovem que passa a segui-lo, e assim por diante. Sem uma divisão formal em capítulos, a sofisticada narrativa passa a acompanhar outros personagens, colando a câmera aos rostos e nucas enquanto caminham floresta adentro. Conforme mergulhamos na trama, o profeta passa a ser visto apenas por impressões de terceiros, que combinam fatos, rumores e a fé pessoal nos milagres. Ele preserva a função de motor narrativo, apesar de ausente em diversas cenas: quando Matilde pega em armas, ou quando Popa se embriaga numa festa e o filho se surpreende com a partida do pai, eles estão reagindo à presença (e ausência) deste homem. O roteiro gira em torno de uma persona lendária, cujo nome adquire uma função social que ultrapassa os atos do próprio líder.

O cineasta encontra um meio-termo interessante entre o naturalismo do cinema amador e o controle de uma escolha conceitual precisa. Por um lado, o trabalho com luzes naturais, ruídos locais e câmera na mão indica uma abertura ao acaso, como se a câmera se adequasse ao movimento espontâneo dos corpos. Na primeira cena, dentro da gruta escura, a captação digital de baixa qualidade transparece limitações, exploradas pelo autor para reforçar o mistério do sujeito que literalmente desaparece na escuridão. Por outro lado, cada segmento preserva um estilo idêntico de movimentos de câmera, luz e captação de som, gerando um senso de coesão e de organicidade na alternância de pontos de vista. As cenas possuem um estetismo discreto, do tipo que jamais chama atenção às proezas da direção, mas tampouco poderia ser confundido com uma ambição imprópria ao tamanho da produção. Em outras palavras, Sosa consegue extrair o melhor de uma estrutura de baixo orçamento, utilizando as limitações do dispositivo a seu favor.

No que diz respeito ao material humano e político, Libório ganha interpretações antinaturalistas, próximas do realismo fantástico e convenientes ao retrato de uma lenda. No papel principal, Vicente Santos usa o corpo imponente, o olhar compenetrado e as roupas azuis (sendo o único a utilizar esta cor) para despertar a aparência mista de guerrilheiro sanguinário e profeta caridoso. Ele não precisa forçar traços da interpretação, visto que a mitologia em torno de si é construída por terceiros. Os coadjuvantes ganham diversas oportunidades de reagir a conflitos invisíveis no enquadramento – ou seja, eles ocupam contraplanos desprovidos do plano. Neste momento, o espectador literalmente observa o herói pelo olhar alheio: pouco importa o que Libório faça, posto que o mais importante se encontra na percepção das pessoas. Karina Valdéz e Ramón Emilio Candelario fornecem belas composições, com os corpos soltos, ora perdidos, ora bêbados, observando as ações principais por frestas nas portas, de cima de uma montanha ou de dentro da floresta densa. Eles favorecem a impressão de uma narrativa circular, onde a morte dá origem à vida, e depois à morte de novo; onde a resistência ao imperialismo norte-americano se torna ponto de partida e de chegada. É difícil determinar se a história do líder messiânico se inicia ou se conclui com suas mortes – talvez os dois, simultaneamente.

Ao espectador brasileiro, este cinema desperta a aparência de familiaridade, não apenas pelo passado comum de exploração norte-americana e de golpes antidemocráticos. Existe um paralelo na reconstituição de lideranças e insurgências por um prisma fabular, aproximando a história do país do realismo fantástico e do terror. Joaquim (2017), Vazante (2017) e Todos os Mortos (2020) vêm à mente dentro deste processo de ressignificação simbólica dos traumas nacionais, onde racismo e luta de classes se convertem em lendas sem começo nem fim precisos, visto que integram um movimento superior aos personagens. Além disso, nestes casos, a morte pode dar origem à vida – o que ocorre literalmente na montagem de Joaquim, e simbolicamente, na libertação dos escravos de Todos os Mortos. Em seu primeiro longa-metragem, Nino Martínez Sosa compreende o potencial do cinema em produzir significado através de representações complexas, sem limitar a linguagem a uma apreensão ou ilustração do real. O espectador pode terminar a sessão de Libório sem saber o que de fato ocorreu na trajetória deste homem, e melhor assim: caso tenha sido instigado pela lenda, que procure os fatos nos livros de história. Ao cinema cabe provocar sensações e estimular debates, privilegiando as boas perguntas às respostas.

Filme visto online no 11º Festival Internacional Pachamama - Cinema de Fronteira, em maio de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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