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Sinopse

Em 1821, no interior do Brasil, nas serras pedregosas das Minas Gerais, depois da economia local, que era baseada na extração de diamantes, ter entrado em colapso, Antonio, um patriarca do século XIX, que ao voltar de uma longa viagem conduzindo uma tropa de escravos descobre que sua mulher morreu em trabalho de parto. A estreante Luana Nastas é Beatriz, menina que lhe é dada em casamento. Na ausência do marido, Beatriz fica sozinha com os escravos. Solidão, incomunicabilidade e preconceito levam a uma espiral de violência.

Crítica

Já nos instantes iniciais de Vazante, percebemo-nos num tempo distinto do atual, no passado excepcionalmente evocado pela fotografia de Inti Briones. As imagens em preto e branco, aliadas ao figurino e à dinâmica escravocrata deflagrada, nos arremessam imediatamente nesse espaço que remonta aos anos 1800, especificamente na jornada ficcional de Antonio (Adriano Carvalho), português frequentemente chamado de Tropeiro, que volta à sua propriedade, depois de um longo período de ausência, com a notícia da morte de sua esposa no trabalho de parto. Nem mesmo a criança sobrevive. Ao largo desse drama, há o cotidiano dos negros acorrentados, subjugados pelo homem branco que os obriga a caminhar em fila, abaixo de chuva e demais intempéries. A cineasta Daniela Thomas, parceira contumaz de Walter Salles, propõe verossimilhança não apenas visual, mas também no que tange ao ritmo, pois tudo obedece aos ditames do século retrasado, das relações ao tempo cronológico arrastado.

Vazante possui uma linguagem rigorosa. A falta de porosidade, porém, não se configura em demérito, pois atende à necessidade de Thomas de aferrar-se a procedimentos que, de certa maneira, auxiliam na recriação, o mais fidedigna possível, de um momento capital, inclusive para entendermos traços da coletividade contemporânea. O elemento principal da reconstituição é exatamente o papel do negro nessa estrutura social absolutamente eurocêntrica. Uma das grandes qualidades do roteiro da cineasta em parceria com Beto Amaral é fornecer as informações básicas para apreendermos as conjunturas ali em voga, sem recorrer a facilidades ou expedientes que deem conta de um intento diretamente explicativo. O decorrer das circunstâncias nos mostra, por exemplo, quem é aquele português no seio de uma família completamente arruinada pelo colapso da extração de diamantes. Ele acaba desposando praticamente uma criança, fato ao redor do qual gravitam temas caros, como o patriarcado, portanto, enraizado em nossa cultura.

A incomunicabilidade é uma das fagulhas da crescente espiral de violência que toma conta do lugar. Escravos africanos que não falam dialetos facilmente decodificados pelos outros são impossibilitados de expressar demandas, anseios e urgências. Tampouco o semblante nebuloso de Antonio, interpretado brilhantemente por Adriano Carvalho, convida ao franco e aberto diálogo. Como homem tradicional, ele toma para si o que a época lhe assegura por direito, seja como homem ou latifundiário. Às mulheres e aos negros cabe a aquiescência ou a revolta, ambos caminhos complicados de percorrer sem qualquer risco à vida. Fabrício Boliveira vive o típico capitão do mato, o serviçal negro da fazenda que oprime semelhantes em função do respeito ao “sinhô”, oriundo dos desdobramentos de anos de dominação europeia que o precedem. Vazante é um filme caudaloso, que flui como as águas lentas, entretanto constantes, de um córrego. A cadência serve apropriadamente ao ethos da era retratada.

Determinados encaminhamentos nos permitem antever desfechos, como o envolvimento da nova senhora da fazenda com o escravo de idade próxima. Todavia, a ourivesaria com que Daniela Thomas constrói esse painel amplo e afetivo, sem recorrer a figuras de linguagem gratuitas ou a algo que as valha, é responsável pela força de Vazante, realização que vai impregnando no espectador, convidando-o a uma experiência tão intelectual quanto sensorial. A rigidez da encenação, da qual deriva a ausência de respiros, enriquece sobremaneira a atmosfera marcada pela tirania vigente, produto do poder financeiro ou da posição de alguns indivíduos na sociedade brasileira de então. A utilização de escravos como meros objetos sexuais, como força de trabalho subordinada irrestritamente à vontade de patrões despóticos, e boa parte de tudo o que desse tipo de arranjo advém, é aqui perscrutado pela câmera de uma cineasta atenta, da cenografia às atuações, dos abismos sociais aos precipícios do existir.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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