Crítica


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Sinopse

Diante de problemas financeiros e emocionais, um trabalhador informal cria um canal no YouTube para tentar monetizar com suas pequenas histórias cotidianas de fracasso.

Crítica

Eu, Empresa (2021) surge da vontade curiosa de fazer do amadorismo uma virtude, e do fracasso, uma vitória pessoal. Para isso, os diretores Leon Sampaio e Marcus Curvelo resgatam Joder, protagonista de curtas-metragens de Curvelo sobre as dificuldades do mundo adulto. O Brasil nunca se apropriou com facilidade da noção do “loser” norte-americano (leia-se: um adulto sem emprego fixo nem casa própria, com dificuldades de relacionamento e de inserção social), talvez pelas diferenças estruturais de cada país. No entanto, os autores se esforçam em criar uma figura ostensivamente fracassada, um “Zé Ninguém”, nas palavras de um personagem. O longa-metragem parte da investigação do homem comum em meio à pós-modernidade: de que maneira o sujeito sem grandes qualidades (e sem grandes defeitos, vale dizer) se adapta ao mundo de redes sociais, curtidas, influenciadores digitais, entregadores de comida via aplicativo, coachs, terraplanistas e empreendedorismo? Procura-se o estranhamento por contraste: o protótipo do sujeito banal, e portanto, atemporal, se confronta a fenômenos representativos de uma época específica.

Os cineastas adotam importantes precauções quanto à linguagem, afinal, visam elaborar um filme sobre os tempos de Internet, mas não para os adolescentes dependentes da tecnologia digital. Por isso, evitam a estética pop, a montagem fragmentada e a empolgação artificial dos youtubers. Em chave oposta, Curvelo e Sampaio apostam nos close-ups e planos de conjunto mais triviais possíveis, na textura digital de baixa qualidade, além da paleta dessaturada e apática, em adequação à personalidade de Joder. Contra o espetáculo do clickbait, apostam num tom melancólico, voluntariamente monótono. Surpreende a decisão de filmar o mínimo possível as telas de computadores, as redes sociais, o YouTube. Alude-se ao imaginário de sucesso repentino associado às plataformas virtuais, jamais aos aspectos práticos das mesmas. Questões relacionadas à remuneração, à propaganda de produtos por influenciadores, à evolução de um canal e sobretudo ao conteúdo veiculado estão convenientemente ausentes. O filme propõe uma sátira branda por parte de cineastas que aparentam desconhecer este universo a fundo, e não possuem interesse em conhecê-lo. Trata-se do deboche, ao invés da crítica corrosiva.

Se Homens, Mulheres e Filhos (2014) mira no estudo antropológico e no tom alarmista, e Apagar o Histórico (2020) opta pelo surrealismo nonsense, o projeto brasileiro se contenta em ser discretamente referencial. Eu, Empresa elege um tema principal, que perpassa a integralidade das cenas, porém sem investigar origens, causas, consequências, alternativas, casos extremos, brechas no sistema e afins. Joder tampouco percorre uma trajetória expressiva, seja em seu desenvolvimento enquanto youtuber, seja nas descobertas pessoais. Compreende-se que os criadores tenham preferido uma narrativa linear, desprovida de conflitos de fato, em contraposição às expectativas da jornada do herói. No entanto, resta a impressão de que têm pouco a dizer sobre os influenciadores, a precarização dos direitos trabalhistas representada aplicativos de entrega e de transporte, ou ainda a falsa psicologia embutida no discurso dos coaches. Chega a ser surpreendente que Sampaio e Curvelo se debrucem sobre temáticas tão incendiárias em termos culturais, políticos e econômicos para fornecer um resultado tão morno e conformista. O discurso aposta com tamanha veemência no humor autocondescendente que permite a Joder investir sem convicção em nenhum projeto, e jamais sofrer com o fracasso – vide a demissão sem formalidades, a suposta ascensão e queda do youtuber e o breve projeto fotográfico.

Ora, o problema não se encontra na postura indiferente de Joder, e sim naquela do filme, que replica o olhar blasé do protagonista. Se o rapaz conquista o sucesso ou desiste, tanto faz, porque investe pouco de sua força, tempo ou recursos financeiros nas iniciativas. É difícil conceber que o personagem sofra para pagar as contas, tenha que sair do apartamento ou abrir mão de algum conforto. Os diretores aludem à conscientização política ao levarem o protagonista para conversar com trabalhadores precarizados reais. Apesar do potencial deste recurso, as conversas são simples, rápidas e exercem impacto nulo sobre a trama, reforçando a impressão de descaso dos autores pelo problema que abordam. A presença de Curvelo/Joder ao lado destes homens, ignorando suas histórias, passados e anseios, se assemelha à estrutura das telerreportagens ou dos programas televisivos onde o apresentador finge mergulhar numa realidade diferente da sua por um dia. As raras inserções documentais somem sem deixar traços, como se constituíssem um pensamento posterior, acrescentado à montagem para atribuir algum peso ao projeto leve até demais.

Resta uma comédia de pequenos sorrisos, distante de ambições cinematográficas ou políticas marcantes. Os diretores acenam para recursos interessantes (os zooms in e out, mudando o enquadramento dentro do plano), que nunca se convertem numa cartilha própria, e tampouco se modificam ao longo da trama. Pequenas piadas ao público cinéfilo (“Ele está trabalhando com cinema? Coitado!”) são insuficientes para discutir as dificuldades do audiovisual, e por fim, Joder precisaria de uma construção muito mais cuidadosa para ocupar um longa-metragem. O humor se torna referencial e retórico, acreditando que basta citar elementos da contemporaneidade (YouTube, ASMR, coach, Uber) para fornecer algum pensamento a respeito. Ora, o que a história teria a dizer sobre a desumanização do trabalho para além da lamentação tragicômica de sua existência? O formato longo permitiria a Curvelo e Sampaio explorarem o absurdo, o ultrarrealismo, as ferramentas do cinema de gênero, o intercâmbio radical entre ficção e documentário. No entanto, os cineastas tratam o longa-metragem como a extensão de um curta, formato onde a figura de Joder bastava para a alusão singela à complexidade dos nossos dias. Preso numa estrutura dentro da qual tem pouco a fazer, deambulando sem objetivos nem questionamentos delimitados, Joder é devorado pelo mundo ao redor.

Filme visto online na 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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