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Sinopse

Durante o século XVIII, a colônia dos Brasis, parte do Império Português, enfrenta um declínio na produção de ouro. Uma minoria portuguesa governa de forma autoritária e corrupta uma sociedade composta, em sua maioria, por escravos africanos, indígenas e mestiços. Joaquim é um militar de destaque na captura de contrabandistas de ouro. Ele espera que sua dedicação seja recompensada com uma patente de tenente para que possa comprar a liberdade da escrava Preta, por quem é apaixonado. A promoção nunca chega, ele se desespera. Neste momento, Joaquim é designado para uma arriscada missão: encontrar novas minas de ouro no temido Sertão Proibido. Cumpri-la será a única forma de conseguir a promoção e a liberdade de sua amada.

Crítica

Joaquim, de Marcelo Gomes, leva ao cinema mais uma encarnação de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, mártir da Inconfidência Mineira (1789), herói nacional que, ao longo da história do Brasil, recebeu diferentes tratamentos por parte dos poderes instituídos – traidor, santo, revolucionário –, e que já apareceu em filmes de matrizes diversas, representando abordagens diversas para temas ligados ao passado da nação – sendo os mais célebres deles Os Inconfidentes (1972), de Joaquim Pedro de Andrade, e Tiradentes (1999), de Oswaldo Caldeira.

Mas, enquanto Joaquim Pedro, em sua obra-prima, apostou no anti-naturalismo e na alegoria para falar com amargura do papel dos intelectuais em contextos autoritários – seu filme foi realizado durante a ditadura militar que governou o país entre 1964 e 1985 – e Caldeira, na efervescência da Retomada, seguiu caminho semelhante ao de Carlota Joaquina: Princesa do Brazil (1995), lançando ao século XVIII olhar irônico e anacrônico com o objetivo de tratar de um presente de corrupção e descrença na política, Gomes se filia a outro tipo de cinema. Joaquim se encontra completamente mergulhado, desde seu início, numa estética da crueza, num naturalismo extremo. O diretor não abre qualquer espaço para a mitificação do protagonista (Júlio Machado), apresentado todo o tempo como um bruto, homem de seu tempo, ganancioso na medida necessária à sobrevivência em meio à aridez da Minas colonial, movido por projetos condizentes com sua pequenez naquela sociedade: uma promoção na carreira militar e a aquisição de riqueza suficiente para comprar a escrava (Isabel Zuaá) por quem se afeiçoa sexualmente.

Ao propor como recorte o período anterior ao do engajamento de Tiradentes no movimento independentista, gastando quase a totalidade de sua narrativa com as atividades de alferes, dentista e minerador do personagem, Joaquim aparenta optar pelo micro, pelo estudo minucioso de uma figura pré-política, ainda muito distante de se tornar um herói capaz de servir de plataforma para reflexões sobre diferentes aspectos do Brasil. Não parece haver, na superfície do filme, a intenção de discutir grandes questões nacionais. No entanto, a dureza do olhar de Gomes acaba se revelando justamente o caminho encontrado pelo diretor para falar sobre a história do país.

O Brasil de Joaquim não é o mesmo Brasil farsesco de Tiradentes ou o alegórico de Os Inconfidentes: da brutalidade do passado desmitificado pelo diretor só parece possível nascer uma nação também bruta, violenta. Assim, a Inconfidência Mineira e a figura de Tiradentes surgem aqui, novamente, como emblemas da formação nacional, mas numa chave negativa – não é à toa que o diretor opta por abrir o filme com um plano aterrador da cabeça do protagonista exposta em público, enquanto o próprio narra ironicamente, em off, seu destino, da execução à transformação em herói estudado nas escolas; tampouco é gratuita a escolha, para acompanhar os créditos finais, pela obra Reflexo de sonhos no sonho de outro espelho, da artista plástica Adriana Varejão, representação da fragmentação do corpo (nacional?) por meio da referência ao esquartejamento de Tiradentes. Em Joaquim, aliás, como na instalação de Varejão, parece ser impossível apreender o todo desse homem martirizado, já que ele surge na tela fragmentado, com Gomes revelando pequenas porções de sua personalidade e de sua trajetória. O próprio recorte da narrativa, portanto, é agente dessa fragmentação. Emerge daí uma leitura da história do Brasil também como país partido, esfacelado, não amalgamável.

Por fim, vale destacar a coerência entre tal leitura e a concepção visual do filme. A câmera na mão, sempre instável, dialoga com a tensão que o protagonista carrega em e sobre si, parecendo estar prestes a explodir. O Joaquim José da Silva Xavier criado por Marcelo Gomes é, nesse sentido, portador de tensão semelhante presente na sociedade brasileira, formada por processos violentos decorrentes de relações violentas, envolvendo pessoas de diferentes raças e nacionalidades ao longo de alguns séculos – processos e relações geralmente escamoteadas, apaziguadas por noções como a de “democracia racial”, que visam negar essa violência e pintar uma história harmônica, em que não existe qualquer conflito de raça ou classe. Joaquim é o oposto disso: ambas as formas de conflito são, no interior da narrativa, absolutamente incontornáveis, o que fica explícito, no primeiro caso, na sequência passada num quilombo, e, no segundo, naquela que encerra o filme.

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é um historiador que fez do cinema seu maior prazer, estudando temas ligados à Sétima Arte na graduação, no mestrado e no doutorado. Brinca de escrever sobre filmes na internet desde 2003, mantendo seu atual blog, o Crônicas Cinéfilas, desde 2008. Reza, todos os dias, para seus dois deuses: Billy Wilder e Alfred Hitchcock.
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