Crítica


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Sinopse

Joana trabalha como escrivã em um cartório e, profundamente religiosa e devota à ideia da fidelidade conjugal, tenta demover os casais que volta e meia surgem pedindo o divórcio. Tal situação a deixa à espera de algum reconhecimento pelos esforços feitos. Entretanto, tudo muda quando ela própria enfrenta uma crise no casamento.

Crítica

A burocracia é o modo pelo qual Joana (Dira Paes, de desempenho notável) acredita que fomentará a igualdade. Todavia, de forma paradoxal, ela retorce as regras uniformes e, a priori, cartesianas do funcionamento do cartório no qual trabalha, oferecendo aos inclinados pelo divórcio a possibilidade da reconciliação mediada por sua religiosidade. Divino Amor intercala a exposição dessa contradição fundamental e a apresentação da rígida distopia evangélica, fruto de uma escalada sintomática do conservadorismo ao ponto do Carnaval ser destituído do posto de maior celebração popular do Brasil. Em seu lugar surge a Festa do Amor Supremo, rave gospel marcada por luzes, batidas incessantes, neons e catarses embaladas por louvores e hinos. Aliás, essa aparente incompatibilidade é bem trabalhada pelo cineasta Gabriel Mascaro como indício de uma realidade em que códigos e condutas são ressignificados. O que atualmente poderia, tranquilamente, ser condenado como pecado, nesse futuro estilizado é tido como uma ode a Deus.

O realizador é hábil no desvelamento desse novo tecido social cerzido pelas diretrizes da fé irrestrita num salvador onisciente. De maneira direta, o filme se comunica com a contemporaneidade brasileira, sobretudo quanto ao protagonismo evangélico e a inclinação ao controle estatal. O governo é autorizado a monitorar geneticamente a população. Faz parte desse ímpeto conservador, por exemplo, a atuação dos detectores situados na entrada de praticamente todos os estabelecimentos. Cabe a eles identificar as pessoas, sempre as atrelando ao estado civil e à profissão desempenhada. Em Divino Amor o casamento heteronormativo é considerado a Célula mater da sociedade, uma instituição salvaguardada a qualquer custo. Joana faz sua parte cooptando casais à beira do colapso ao grupo de orações e práticas que visam evitar o rompimento doméstico. Homem e mulher, assim aludindo a Adão e Eva, devem permanecer unidos a despeito das vicissitudes.

Gabriel Mascaro lança mão de uma estética bastante elaborada. Visualmente, sobressaem as passagens da Festa do Amor Supremo, com destaque especial à belíssima e gradativa entrada no primeiro plano de um ser de luz sobre pernas de pau. Todavia, nas cenas rotineiras a fotografia de Diego Garcia (Cemitério do Esplendor, 2015) igualmente representa a convivência entre sagrado e profano, vide os interiores esfumaçados e com jeito de casa noturna. Assim como o cristianismo factualmente utilizou ícones de outras crenças para estabelecer a sua hegemonia, o evangelismo contido em Divino Amor é uma doutrina nutrida semioticamente de elementos antes essenciais a outras instâncias. O cineasta é particularmente engenhoso ao oferecer panoramas adiante desdobráveis, como a consulta espiritual tipo fast-food, suficientemente entendida num momento inicial, mas totalizada à frente como um traço dessa coletividade adoentada. Da mesma forma acontece no ritual destinado aos casais, ocorrências que mesclam subserviência ao culto e pura excitação.

Divino Amor escancara a sua crítica social. Em função do percurso aparentemente marcado pela previsibilidade, mas distante dela, alimenta pistas falsas. Gabriel Mascaro é ousado ao não poupar na nudez e na intensidade do sexo, com isso apresentando a comunhão entre corpo e alma por meio da explosão do querer, da carnalidade abençoada pelos protocolos convenientes da religião. O drama de Joana vai do comezinho ao extraordinário. O ponto de inflexão é aquilo que parece milagroso, o que a aproxima de uma figura santificada ao longo dos séculos. A narração da trama, feita por uma voz infantil tão enigmática quanto expressiva dentro desse contexto, se encarrega de gerar uma camada instigante, revelada nos minutos finais. Com uma excelente trilha sonora, parte imprescindível da criação dessa atmosfera singular, o filme mira nas hipocrisias nossas de cada dia, travestindo o presente com as roupas de um apocalipse iminente e verossímil.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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