Crítica


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Sinopse

Três prostitutas cruzam diariamente a fronteira entre a França e a Bélgica, para trabalharem no país vizinho. Elas se ajudam enquanto suportam a miséria e a violência da profissão. Um dia, o gesto violento do marido de uma delas forçará o trio a cometer um ato sem volta.

Crítica

Por um lado, Trabalhadoras constitui um cinema de qualidade, na melhor tradição do realismo social desenvolvido na França. Os diretores Frédéric Fonteyne e Anne Paulicevich acompanham o trio de personagens com a câmera na mão, cuidadosamente estabilizada e coreografada pelo entra e sai das casas, as brigas com os filhos, a chegada ao prostíbulo para trabalhar. A imagem nunca se interrompe porque estas mulheres se encontram em constante movimento, e enxergamos o mundo pelos olhos dela. Existe a preocupação notável de equilibrar a vida profissional com a vida afetiva, os dilemas familiares e financeiros, os acenos ao passado e os sonhos para o futuro. O roteiro transparece o cuidado em desenvolver o temperamento de cada heroína, fazendo com que o encontro entre elas provoque conflitos suficientes em si, sem a necessidade de reviravoltas externas (doenças, catástrofes etc.). Estamos próximos de um naturalismo crítico, atento à classe média-baixa, à situação na periferia, ao preconceito contra imigrantes e a objetificação das mulheres. Cena a cena, nota-se a reflexão prévia dos diretores quanto à representação.

Por outro lado, o drama soa antiquado. Trata-se de um modelo de direção muito admirado vinte anos atrás, do tipo que conquistaria prêmios importantes em festivais de primeira linha. O olhar objetivista, seguindo mecanicamente as mulheres sem permitir metáforas, poesias nem respiros, foi utilizado às pencas na cinematografia francesa, e então ressignificado e modificado pelos irmãos Dardenne, por Laurent Cantet, Céline Sciamma e tantos outros. Os críticos e pesquisadores já valorizaram com fervor as produções locais pela crueza do olhar, a suposta humildade de colocar os personagens em primeiro lugar (apesar da vaidade da coreografia dos planos-sequência), de se entregar aos heróis dia e noite, sem noção de finalidade, somente contemplando o cotidiano. Pairava uma impressão de respeito neste dispositivo, como se a aparente invisibilidade da câmera implicasse na apreensão direta do ponto de vista dos protagonistas, sem o filtro do diretor. Aos poucos, a virtude deste humanismo se desgastou aos olhos do cinema de autor.

Assim, diretores aliados a esta forma de linguagem passaram a abraçar as ferramentas do gênero, o pastiche, o fabular, a ficção científica, o terror, o grotesco, o pop, a narrativa fragmentada, a janela mutável, a textura do digital. Diante de tantas possibilidades, Trabalhadoras chega à festa atrasado. Bem produzido, realizado e finalizado, encontra-se distante das formas trazidas pela contemporaneidade. O roteiro se divide em três partes, uma para cada protagonista, permitindo rever uma cena-chave por prismas distintos. Mesmo sem uma divisão explícita com letreiros, a montagem agrupa a narrativa em segmentos: primeiro a vida de Axelle, mãe de três crianças, tentando fugir do marido abusivo e lidar com a opressão materna; então a rotina de Conso, jovem de origem africana, apaixonada por um de seus clientes, e por fim Dominique, mulher experiente e mãe simbólica para as outras prostitutas, submersa pela crise dos filhos adolescentes. Elas ilustram três gerações (20, 35 e 50 anos), três configurações afetivas, três maneiras de enxergar o sexo e a profissão. Juntas, pretendem oferecer um panorama completo da mulher francesa periférica. Fonteyne e Paulicevich abraçam a metonímia singela, sem desenvolver coadjuvantes capazes de furar a bolha multiétnica e multigeracional.

Por mais plausível que seja a amizade entre elas, esta estrutura carrega a artificialidade das sitcoms femininas onde uma personagem é recatada, a outra é sexualmente voraz, a terceira só pensa em trabalho etc. É conveniente limitar a personagem a uma função e classe específicas, transformando-as em porta-vozes dos grupos aos quais pertencem. O elenco fornece atuações competentes, porém no estilo esperado de suas intérpretes: Sara Forestier, acostumada ao papel de mulheres brutas e de fala rápida, repete essa agressividade com Axelle; Noémie Lvovsky aproveita o timbre doce e o talento cômico para introduzir leveza à opressão cotidiana, e Annabelle Lengronne representa o frescor da juventude através da atitude irresponsável e sonhadora, que a faz parecer ainda mais jovem do que é. Juntas, entregam composições confortáveis para um filme sobre desconfortos e violações. As interações poderiam ser mais frutíferas caso a montagem não passasse tanto tempo admirando cada uma delas individualmente. O clímax que une as três ampliaria sua potência caso conhecêssemos melhor o laço que as une para além do emprego na mesma casa noturna.

O que os cineastas teriam a dizer sobre a prostituição contemporânea, além da constatação de sua existência? Eles concebem alguma escapatória à atividade asfixiante? Um bom exemplo das limitações desta abordagem provém da representação do sexo. Fonteyne se tornou conhecido no cinema com o impressionante Uma Relação Pornográfica, em 1999. Agora, reprisa a imagem do ato sexual com um misto de crueza e pudor: por um lado, filma a nudez das atrizes sem vaidade nem fetiche. As atrizes se limpam após usarem o vaso sanitário, revelam os seios, as nádegas, a púbis, num contexto em que a nudez se faz pertinente. Em contrapartida, na hora de filmar as relações de casais, o enquadramento observa os corpos da cabeça ao peito. Que realismo teria receio de expor nádegas durante o sexo, ou sugerir o barulho da penetração em off? Enorme (2019), comédia leve também disponível no MyFrenchFilmFestival, brinca com o nariz úmido de um homem após fazer sexo oral na esposa. Não há contato explícito, porém a diretora busca a textura do corpo, o gosto dos fluidos, a imagem da carne. Já Fonteyne dirige o sexo de maneira quase romantizada (caso de Conso com Jean-Fi), algo contestável em se tratando de prostitutas pobres e exploradas. Ressalvas à parte, resta um drama coeso, amarrado por uma bela cena final, e alheio a julgamentos morais sobre as atitudes de suas protagonistas.

Filme visto online no 11º MyFrenchFilmFestival, em janeiro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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