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Sinopse

Uma menina de 13 anos, de uma família tradicional do interior, descobre que seu pai tem uma filha de outra mulher, com a mesma idade e o mesmo nome dela, Irene. Agora, a filha do meio se sente num lugar de rejeição e começa a tentar descobrir quem ela é e quem quer ser. Ela começa a perceber como se dão as relações sociais e vai entendendo que o universo adulto é feito também de segredos e mentiras.

Crítica

Irene acredita nunca ter sido especial. É a filha do meio, e numa família de três irmãs, qualquer um que veja de fora sabe muito bem o que isso implica. Não foi a primogênita, a primeira a chegar, o original fruto de amor dos pais, e nem a caçula, a pequena adorável, a criança que pode ser perdoada por tudo, o último resquício da infância. Mas se fingia não dar importância às atenções em excesso que as demais recebiam, também não suspeitava que sua situação poderia piorar. Afinal, como agir a partir do momento em que descobre que o pai não só tem mais uma família, como também mais uma filha, da mesma idade que ela e, para sua total desgraça, ainda com o nome igual ao seu? Sua individualidade, que já era ínfima, desaparece. Ela quer única, mas está desaparecendo. Assim começa o delicado drama da protagonista de As Duas Irenes, filme que marca a estreia na direção de Fabio Meira e, selecionado para a mostra competitiva nacional de longas do 45o Festival de Cinema de Gramado, se confirmou à altura das expectativas levantadas e em perfeita sintonia com esse momento feminino em que o evento da Serra Gaúcha se encontra.

Além de As Duas Irenes, Gramado apresenta neste ano em sua seleção principal os filmes Como Nossos Pais (2017), Pela Janela (2017) e Vergel (2017) – todos protagonizados por fortes mulheres. A questão, no entanto, é que aqui elas ainda não são assim – estão aprendendo a ser. E este rumo ainda está sendo discutido – tanto em si como uma com a outra. Sim, pois Irene não ficará calada. Ela precisa compartilhar dessa verdade – ambas sentem essa urgência. Acompanhamos de perto da jornada daquela que podemos chamar de Irene 1 (Isabela Torres), a filha que estava longe de ser perfeita – e nem ansiava por isso. Mas queria, ainda que sob vias tortas, o seu reconhecimento. Era a magrela do pai, a que estava quase lá, mesmo já tendo deixado de ser. Mas seria a Irene 2 (Priscila Bittencourt) tão inocente? É certo que não.

E aqui não vai nenhum spoiler, até porque é força motora para o desenvolvimento da trama: Irene 2 também está a par da vida dupla paterna. As questões, portanto, começam a partir dessa verdade ambígua. Teria a aproximação entre elas sido motivada por essa curiosidade mútua que ambas compartilhavam? Uma finge um interesse pela mãe costureira daquela família que lhe é estranha para se apresentar, mas a segunda se abre quase que de imediato, adotando a nova “amiga” sem muitas ressalvas. Há intenções não reveladas óbvias nesse movimento, mas quais? Separadas, cada uma tem um problema com o qual precisam lidar, e não sabem como. Juntas, os esforços se multiplicam. Estariam ambas vivendo os mesmos conflitos? E, desse modo, não seria a solução de uma vislumbra a mesma a ser empregada pelas duas?

Irene 1 vê sua irmã menor ainda no colo do pai, ao mesmo tempo em que presencia a excitação da mais velha em função de sua festa dos 15 anos que se aproxima. Ela, portanto, é quase invisível. Precisa ser vista, ser notada, lembrada. Irene 2, por sua vez, dá a entender não passar por este tipo de questionamento. Ela chega e sai de casa a hora que quiser, não espera os meninos e avança quando quer beijá-los, não aceita rejeições e assume suas próprias atitudes. Cada uma, a seu jeito, lida com esse afastamento do único homem de suas vidas, seja por instantes ou por toda a vida ainda tenra que só agora percebem ter tantas lacunas. Neste processo, o filme ganha muito com a presença de Marco Ricca como essa figura austera e, ao mesmo tempo, afetiva. A mesma que ele abraça e torce, pode ser aquela a qual irá virar a cara em seguida. Longe de ser um vilão unidimensional, é uma figura complexa, do qual mais sentimos pena do que desprezo. Essa dúvida é real, e está também na ficção, principalmente entre estas filhas em paralelo.

Irene quer ser única, mesmo feliz, agora, por fazer parte de outra. “É difícil ler o que você está pensando”, a irmã lhe diz. Mas isso se verifica em quase todos em cena. São pessoas vivendo momentos difíceis, sendo obrigadas a tomarem posturas e decisões que, se possível fosse, adiariam para sempre. Mas pouco importa o pai, as mães, as irmãs. O olhar está nestas duas garotas, tão distantes e, ao mesmo tempo, tão próximas. As Duas Irenes sabe a força da verdade que carrega, e não faz pouco caso disso. É um filme simples, porém longe de ser simplório, justamente pelo poder das imagens que carrega e das personagens que apresenta. Uma energia que se verifica tanto como exemplo do conjunto que defende como também pelo dilema que propõe. E mais do que a mão cuidadosa e delicada do realizador, um marinheiro de primeira viagem que se revela pronto para se aventurar em mares ainda mais bravios, tem-se aqui um longa que sabe como fazer uso da narrativa cinematográfica para estimular a reflexão, a troca e a simpatia. Por todos, independente dos passos em falso inevitáveis que cada um vá acumulando em sua caminhada.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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