Maurício Farias e Carolina Kotscho assumiram uma missão nada fácil: levar para a tela grande a história de Hebe Camargo, uma das maiores artistas e apresentadoras que o Brasil já teve. Com uma carreira de mais de seis décadas, Hebe faleceu em 29 de setembro de 2012, mas desde então já foi motivo de livros, peças de teatro, musicais, reportagens especiais e muito mais. Era preciso, no entanto, revelar uma Hebe que ninguém conhecia, através de uma visão diferenciada. Kotscho, roteirista de cinebiografias de sucesso, como 2 Filhos de Francisco (2005), Flores Raras (2013) e Não Pare na Pista (2014), foi a primeira a embarcar no projeto, e responsável também por chamar Maurício Farias, cineasta responsável por comédias como O Coronel e o Lobisomem (2005) e Vai que dá Certo (2013), para assumir a direção. Aproveitando a passagem da dupla pelo Festival de Gramado – onde o filme foi premiado com o Kikito de Melhor Montagem – o Papo de Cinema teve uma conversa inédita e exclusiva sobre Hebe: A Estrela do Brasil. Confira!
A primeira exibição de Hebe: A Estrela do Brasil foi durante o Festival de Gramado. Como vocês analisaram a reação do público?
Carolina Kotsho: O problema foi que nos colocaram sentados muito na frente, então não deu pra ficar observando as reações. Mas foi legal ouvir o quanto o pessoal ria. A gente, ainda mais no caso dos roteiristas, nunca sabe se o que tá fazendo é engraçado ou não. Ao mesmo tempo, acho que esse é um filme perturbador. Porque as pessoas vão até ele com uma expectativa, lembrando do riso e do brilho da Hebe, e ele propõe um outro lugar, uma reflexão diferente. Por tudo isso, fiquei feliz, pois percebi que os espectadores embarcaram nessa proposta. Gostaram de se deparar com essa Hebe que faz rir e também faz chorar. Ela nunca escondeu isso, por mais que os fãs filtrassem esses momentos mais conturbados. Afinal, ela ia para frente da câmera e colocava suas dores, comprava suas brigas ao vivo, para o Brasil inteiro.
Como nasceu essa ideia de uma cinebiografia da Hebe Camargo?
CK: Na verdade, foi um convite do Lucas Pacheco, que é um dos produtores do filme. Junto estava o Claudio Pessutti, sobrinho da Hebe, e que também assina como produtor. Quando fui olhar, era um material fascinante para alguém que trabalha com dramaturgia. A Hebe ficou 60 anos no ar, imagina a quantidade de horas disponíveis ao nosso alcance? Mas, além disso, haviam coisas interessantíssimas no acervo da família. Encontramos uma fã com todos os recortes de jornal desde a primeira aparição dela em um jornal! Esse momento da pesquisa é o que mais gosto.
Enquanto roteirista, o que é mais importante para você?
CK: A minha paixão, na hora de contar uma história, é poder me apropriar desse universo que não é o meu e entender, pra mim, qual é a melhor maneira de contar aquela história. Se a Hebe estivesse aqui, hoje, contando a própria vida, ainda assim seria a versão dela. A gente vai adaptando a memória, isso é natural. Mas eu tinha ela, na primeira pessoa, no tempo real. Com todas as contradições, transformações, no calor do que aconteceu. Foi uma das escolhas mais difíceis, mas acredito que o momento que enfocamos no filme guarda a essência dela. É quando ela transborda, quando deixa de ser uma boneca no palco para ser a Hebe que todos conhecemos. Quando entendeu o poder daquele microfone e da audiência que estava ao seu lado.
E você, Maurício, como entrou no projeto?
Maurício Farias: Foi a Carol que me convidou! Além de autora, também é uma das produtoras, e foi quem lembrou do meu nome. Quando o convite chegou, estava num momento complicado na televisão. Fazia, para você ter ideia, uns cinco programas ao mesmo tempo. Era o Tá no Ar: A TV na TV (2014-2017), o Tapas e Beijos (2011-2015), o Mister Brau (2015-2018), o Zorra (2015-), ou seja, era uma loucura. A minha primeira reação foi de surpresa, pois o que me veio à mente era uma visão distanciada. Não só na memória, mas também uma identidade. Seria um grande desafio falar da Hebe, pois foi uma pessoa cheia de contradições. Ficamos um tempão nesse namoro, esperando a hora de trabalharmos juntos, até que o roteiro ficou pronto e, quando o li, fiquei fascinado. Pude perceber o recorte que a Carol havia feito, o porquê daquela escolha. Ao mesmo tempo, comecei, de fato, a enxergar e entender quem foi a Hebe. Compreendi, também, porque a minha percepção já era positiva a respeito dela. Essa visão que eu tinha, à distância, era também de uma parte do público. Por isso penso que o filme irá surpreender. A Hebe era à frente do seu tempo em muitas coisas, mas também superconservadora em outras. Mas, acima de tudo, as qualidades dela eram impressionantes.
Cinebiografias são quase um gênero à parte no cinema brasileiro. No entanto, a grande maioria se ocupa de traçar a vida inteira do homenageado, da infância à morte. Hebe: A Estrela do Brasil não é assim. Como foi feita essa escolha de seguir por um outro caminho?
CK: Sempre estudo muito antes de tomar decisões como essa. A minha preocupação, antes de qualquer outra coisa, é buscar a essência do personagem. Penso que, se fôssemos por uma abordagem mais tradicional, não seria possível esse mergulho tão profundo. Não teria como se conectar com quem, de fato, foi a Hebe. Viraria um power point. Seria apenas uma sequência de fatos, sem ter o que realmente importa. No entanto, escolhemos um ponto específico, e acho que está tudo ali. Através dele será possível entender quem foi aquela mulher. Os outros fatos estão na wikipedia, basta dar um Google. Eles, por si, não nos trazem nada. A minha ideia era que essas duas horas do filme, de alguma forma, pudesse causar alguma perturbação. Através dessa conexão emocional com a história.
Maurício, você em algum momento chegou a questionar essa decisão?
MF: Quando ela me mandou o roteiro, me perguntou o que eu havia achado. Comprei na hora o recorte que estava propondo. Tem uma coisa que é resultado de uma série de encontros, que me parece que foram felizes, e que me causam essa sensação de termos acertado, é que o filme é uma obra de ficção sobre a Hebe. Aqueles personagens que estão lá foram reimaginados. Não pegamos um vídeo caseiro da Hebe e ficamos preocupados em apenas copiar como eles eram. Nada disso. Fizemos uma leitura, uma interpretação de todos nós que fizemos o filme sobre o que se passou, de uma maneira que até nem está numa linha cronológica exata. Os fatos não são todos reais. No entanto, o trabalho da Carol, feito com tanta maestria, pode resgatar muito da Hebe. Seja nas falas, no palco, no modo dela se portar. São coisas que foram pinçadas diretamente de como ela era. Isso dá essa sensação de estarmos diante da própria Hebe. Provavelmente, algum estudioso da vida da Hebe vai vir até nós e dizer: “poxa, vocês mentiram muito” (risos). Aquilo foi invertido, tal coisa não aconteceu, e por aí vai.
A Andréa Beltrão não parecia a escolha óbvia para o papel da Hebe Camargo. Como foi trazê-la para o filme?
MF: Pra mim, até por questões óbvias, é sempre um prazer trabalhar com a Andréa. É uma atriz espetacular, uma parceira incrível. Pertence a um time de atores que deixa qualquer diretor satisfeito, pois está ali no set para contribuir também. Tem muita personalidade e entendimento do que se passa dentro de uma obra. Trabalhar com ela é sempre enriquecedor. Dito isso, preciso confessar: a escolha foi da Carol (risos). Quando me sugeriu, como diria não? Já tava mais do que aprovada (risos). Conheço bem a Andréa, sei da capacidade e do talento dela, e que havia nela vários caminhos que sugeriam o trabalho como foi feito, uma interpretação de quem foi a Hebe. Claro, num primeiro momento ela ficou apavorada. Mas depois se acalmou e embarcou junto.
CK: É bom dizer que escrevi o roteiro para a Andréa. Quando recebi o convite, procurei por ela, no set do Tapas e Beijos, para conversar a respeito, antes mesmo de escrever o texto. Aliás, foi nessa ocasião que vi o Maurício em ação pela primeira vez. Nos outros projetos não foi assim, mas nesse só conseguiria escrever sabendo quem iria entregar. A Andréa, pra mim, tem uma qualidade rara, um carisma que transborda, adora fazer comédia, mas a busca pessoal dela passa pelo drama. Puxa, ela tá fazendo Antígona no teatro! Não é uma imitação da Hebe, mas é uma atriz que ocupa esse espaço, com a força que a Hebe tinha. É lindo o que a Andréa faz, e muito difícil.
MF: Teve um momento, lá no começo, que chegou pra mim e disse: “isso não vai dar certo, não vou conseguir fazer”. Foi quando disse pra ela: “você não precisa fazer a Hebe. Nem é isso que queremos. Você tem que fazer a tua Hebe. A tua versão”.
Vocês conseguem identificar o momento em que ela, enfim, pegou a Hebe para si?
MF: Antes das filmagens, a Andréa passou um ano e meio estudando a vida da Hebe.
CK: Na verdade, foi mais. Pois fiz a convidei antes de escrever o roteiro. Falei com ela, me disse sim, e daí fui escrever. Quando tava pronto, é que dei para ela ler e, de fato, começar a pesquisa dela. Acho que esse processo todo deu uns dois, três anos.
MF: Ela ficava estudando direto. E hipnotizada, pois a Hebe era uma figura muito carismática. E que tá viva na memória, há muito material a respeito dela. Um dos maiores desafios dessa cinebiografia era justamente se dissociar de tudo isso. Afinal, de que valeria apenas imitar a Hebe? Ficaria uma farsa. Era preciso encontrar o sentimento dela.
Para encerrarmos: há planos de desdobrar o filme em outros projetos?
CK: Já estamos trabalhando na série sobre a Hebe, mas não será uma versão estendida do filme. Se trata de um outro projeto. São abordagens diferentes. A série já foi toda filmada, mas deverá ser lançada apenas em 2020. Temos muita Hebe ainda pela frente.
Entrevista feita ao vivo em Gramado em agosto de 2019
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