Gramado consagrou, em sua 45° edição, o longa brasileiro Como Nosso Pais, de Laís Bodanzky, e o argentino Sinfonia para Ana, de Virna Molina e Ernesto Ardito, e o curta brasileiro A Gis, de Thiago Carvalhaes, como os melhores filmes do ano em cada categoria. Este resultado, no entanto, não pode ser aceito de forma imparcial. Se no caso da produção nacional em longa-metragem a escolha foi inequívoca – mas também óbvia – o mesmo não pode ser dito a respeito dos demais premiados, tanto nesta como nas outras seleções. Se a curadoria optou por um conjunto seguro, sem assumir riscos, já os júris oficiais foram um tanto esquizofrênicos, revelando uma gritante falta de sintonia tanto com o público, quanto com a crítica especializada presente no evento da Serra Gaúcha.

Equipe do filme Como Nossos Pais, de Laís Bodanzky – Crédito Diego Vara/ Pressphoto

Para começar, vemos a mostra competitiva de longas brasileiros. Dos sete títulos escolhidos, apenas três eram, de fato, inéditos. E esses – Bio, de Carlos Gerbase, O Matador, de Marcelo Galvão, e A Fera na Selva, de Paulo Betti, Eliane Giardini e Lauro Escorel – eram assinados por veteranos do festival (tanto Gerbase quanto Galvão e Betti já foram premiados em edições anteriores). Por quê não chamar os amigos, não é mesmo? Dos demais, verificamos títulos exibidos em Berlim (Como Nossos Pais, As Duas Irenes), Roterdã (Pela Janela) e BAFICI (Vergel). E o resultado do júri oficial seguiu essa previsibilidade, denotando uma incrível falta de ousadia e coragem.

Grande vencedor do ano, Como Nossos Pais levou seis kikitos: Filme, Direção, Atriz, Ator, Atriz Coadjuvante e Montagem. Com a vitória de Laís Bodanzky, esta foi a quarta vez, em quarenta e cinco anos, que uma mulher é premiada na categoria de Direção, após Ana Carolina, por Das Tripas Coração, em 1983, Anna Muylaert, por Durval Discos, em 2002, e Tizuka Yamasaki, por Gaijin: Ama-me Como Sou, em 2005. Uma curiosidade é que o pai da cineasta, Jorge Bodanzky, ganhou o mesmo prêmio em 1979 por Os Mucker (1978). Este, aliás, é o segundo kikito da diretora, premiada pela primeira vez no evento gaúcho com o documentário Cine Mambembe: O Cinema Descobre o Brasil, que em 1999 levou o Prêmio Especial do Júri. Já Clarisse Abujamra também conquistou seu segundo Kikito, novamente como Melhor Atriz Coadjuvante, após sua vitória por A Coleção Invisível, em 2013.

Laís Bodanzky, premiada como Melhor Direção por Como Nossos Pais – Crédito Diego Vara / Pressphoto

Muito se falou sobre essa ser uma seleção “feminina”, principalmente por quatro dos sete longas serem dirigidos por mulheres. Parabéns, neste quesito, para a curadoria. No entanto, como o júri oficial – formado por Carlos Diegues, Bárbara Paz, Alfredo Calvino, Edu Felistoque, Katia Adler e Miguel Barbieri Jr. – pode ter sido tão cedo a ponto de premiar apenas um destes títulos? Os demais – Pela Janela, Vergel e A Fera na Selva – foram ignorados (este último ganhou um dos dois (!) prêmios especiais do júri, mas direcionado aos realizadores, e não ao filme). Pela Janela é o caso mais gritante, principalmente pela atuação sublime da protagonista Magali Biff, que teve a melhor performance de todo o festival – em qualquer categoria! O fato dela ter sido preterida é injusto e inexplicável.

O segundo filme mais premiado dessa mostra foi As Duas Irenes, de Fábio Meira, vencedor em quatro categorias: Prêmio da Crítica, Roteiro, Direção de Arte e Ator Coadjuvante, para Marco Ricca. Essa, aliás, foi uma das tantas confusões da noite, pois o astro havia sido qualificado pela produção do festival como concorrente a Melhor Ator, posição ignorada pelo júri oficial. Assim, acabou sendo premiado numa categoria que não foi anunciado, e, quando citado, foi ignorado. Bio, por sua vez, ganhou do júri oficial apenas o prêmio de Melhor Desenho de Som, mas se contentou com outros dois troféus alternativos: Prêmio Especial do Júri, pela direção de 39 atores em cena – como se quantidade fosse significado de qualidade – e Melhor Filme pelo Júri Popular (um resultado bem questionável, já que era o concorrente com a maior equipe presente no festival, e, portanto, com o maior número de pessoas votando a favor).

Carlos Gerbase, diretor de Bio – Crédito Edison Vara/ Pressphoto

Entre os estrangeiros, outro absurdo de provocar dores no estômago: o argentino Sinfonia para Ana, um melodrama estudantil com ares de novela mexicana, foi escolhido como Melhor Filme e Fotografia (escolha também inacreditável, pois seu visual é perturbador, e no pior sentido, gerando uma claustrofobia exagerada que destoa do tom da narrativa), enquanto que o mais premiado, o também argentino Pinamar, levou os de Direção e Ator (dividido entre os protagonistas Juan Grandinetti – filho do grande Dario Grandinetti – e Agustin Pardella), além do Prêmio da Crítica. Outro título intrigante, de composição estudada e dono de temas pertinentes, o colombiano X500, foi esnobado pelo júri oficial – Alquimia Peña, Isaac León, Patricia Primón, Pedro Zurita e Veronica Perrotta – terminando sua participação de mãos abanando.

Katerina D’Onofrio, do peruano La Ultima Tarde, era, evidentemente, a melhor Atriz, mas esse filme nunca deveria ter sido reconhecido também pelo Roteiro – tanto X500 quanto Pinamar eram candidatos mais fortes a esta honraria. La Ultima Tarde é uma mistura de Antes do Amanhecer (1995) com A Morte e a Donzela (1994), com um resultado irregular que só consegue manter algum tipo de atenção pelo esforço de seus atores (Lucho Cáceres seria igualmente uma boa opção para Melhor Ator, pois está à altura de sua colega de elenco). Os documentários Los Niños e Mirando Al Cielo, por outro lado, são tão equivocados que é de se surpreender que tenham ganho seus kikitos (Prêmio Especial do Júri e Júri Popular, respectivamente). Já o uruguaio El Sereno foi esquecido logo que sua projeção se encerrou, um dos poucos resultados justos, por sinal.

Equipes de Pinamar (à esquerda) e de Sinfonia para Ana (à direita) – Crédito Cleiton Thiele / Pressphoto

Para finalizar, a seleção de Curtas Nacionais também não alcançou as boas notas de anos anteriores. O que se percebeu pelas escolhas do júri oficial – Germano Pereira, Gustavo Spolidoro, Marta Machado, Tula Anagnostopoulos e Vera Zevarucha – é que, para ser premiado, bastava abordar em sua narrativa algum tipo de minoria. Foi assim com A Gis (Melhor Filme, Montagem e Júri Popular), doc sobre uma travesti brasileira assassinada em Portugal, Cabelo Bom (Prêmio Especial do Júri), doc sobre identidade negra, Tailor (Melhor Direção e Prêmio Canadá 150 para Jovens Cineastas), doc em animação sobre a realidade transexual, e O Quebra Cabeça de Sara (Prêmio da Crítica e Prêmio Canal Brasil), doc sobre a transição entre heterossexualidade e homossexualidade. Como se percebe, os documentários deram um show em seus concorrentes de ficção, além de uma demonstração clara dos jurados estarem atentos não apenas à qualidade dos títulos apresentados, mas também a sintonia que cada um apresentou com o que hoje se discute.

A melhor atriz foi a menina Sofia Brandão, por O Espírito do Bosque, que interpreta uma garota que se mostra mais valente que seus primos (empoderamento feminino desde a infância), enquanto que o melhor ator foi Nando Cunha, por Telentrega – um intérprete negro acostumado a fazer comédia aqui em um dos seus primeiros papeis dramáticos, uma mudança que ele chamou atenção em seu discurso de apresentação, terminando com um apelo: “por favor, diretores, vejam os atores negros pelo que eles são, ‘atores’, apenas, e não pela cor de suas peles”. Sua vitória, portanto, foi a consagração dessa vontade, e resultou no momento mais emocionante da noite, com ele recebendo seu Kikito às lágrimas. E que fique claro: nenhum destas escolhas parece equivocada – são justas, porém envoltas por esta particularidade aqui apontada. É de se lamentar que títulos como Médico de Monstro, Objeto/Sujeito e Sal, por exemplo, tenham sido ignorados, assim como Postergados (melhor Roteiro) merecia um maior reconhecimento. Mas, no geral, o júri se saiu melhor do que a comissão de seleção (a inclusão de um filme como o horroroso #Feique é tão surpreendente quanto constrangedora).

Nando Cunha, melhor ator em curta por Telentrega – Diego Vara / Pressphoto

Gramado, agora, se prepara para a edição 46 com muito a ser repensado. O próprio destaque dados aos curadores – Rubens Ewald Filho, Marcos Santuário e Eva Piwowarski – como se compusessem uma força acima de qualquer suspeita, é curiosa – tal presença é única no cenário nacional de festivais, pois o trabalho destes deveria se encerrar antes do início do evento, com uma atuação restrita aos bastidores, sem almejar com tamanha ânsia a atenção dos holofotes. A divisão entre longas brasileiros e estrangeiros também soa anacrônica: por que não colocar todos concorrendo juntos, como já foi em edições passadas? Ou, enfim, dar uma atenção maior aos estrangeiros – mostra que há anos vem sido criticada pela baixa qualidade do seu conjunto (em 2017, o melhor filme é nota 6, talvez 7). Uma boa ideia talvez fosse organizar um time de peso, solicitando que cada país escolhesse por si só um representante – como acontece no Oscar, por exemplo. Assim poderíamos ter acesso ao melhor do Uruguai, Argentina, Chile, Peru, Colômbia, Paraguai, Venezuela, Equador ou Bolívia, organizados de forma a despertar mais interesse e relevância.

Já no caso dos brasileiros, há situações que seguem sendo desprezadas. Neste ano, a disputa estava forte entre as atrizes. Maria Ribeiro, a premiada, no entanto, irá se alinhar ao lado de outras de pouca expressão no cinema, como Mel Lisboa, Ingra Liberato, Andreia Horta, Juliana Paes, Vivianne Pasmanter, Maria Fernanda Cândido e Isabel Guerón – e isso só do ano 2000 para cá. Todas novatas, belas e em início de carreira, com algumas variações. Enquanto isso, veteranas como Magali Biff e Fernanda Montenegro seguem sem esse justo apreço. Já Paulo Vilhena, um ator evidentemente limitado, acabou sendo premiado simplesmente pela falta de concorrentes – seus oponentes eram Paulo Betti (A Fera na Selva), em uma composição que não foi bem recebida, e o português Diogo Morgado (O Matador), que não merece nem a lembrança dessa citação. Muito mais justo teria sido dar o Kikito de protagonista para Marco Ricca (As Duas Irenes), que mesmo em uma presença discreta, possui a força que seu filme exige.

Paulo Vilhena e Maria Ribeiro, o melhor Ator e a melhor Atriz de 2017 – Crédito Cleiton Thiele / Pressphoto

Não seria melhor se Gramado fosse como os grandes festivais do mundo, como Cannes, que premia a Melhor Atuação Feminina e a Melhor Atuação Masculina, apenas, independente dessas serem principais ou coadjuvantes? Em um universo tão restrito de apenas sete longas concorrentes, reconhecer quatro intérpretes é um exagero que só encontra ressonância na vontade deste festival em apresentar celebridades em seu (imenso) tapete vermelho. E aqui chegamos ao cerne da questão. Gramado é, acima de tudo, uma cidade turística. Assim, é importante atrair o interesse de muita gente, talvez muito mais do que os lugares disponíveis do Palácio dos Festivais. Mas por que não alinhar uma coisa com a outra? Astros e estrelas não precisam disputar atenção com os filmes na tela. E enquanto essa lição não for aprendida, este continuará sendo um festival glamoroso, porém problemático.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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