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Sinopse
Kelly é uma cantora de forró eletrônico que deixa um rastro de mortes enquanto cumpre uma lotada agenda de shows em inferninhos pelo sertão. Ao ser investigada, ela transforma a turnê numa estratégia para fugir.
Crítica
“Em terra de matador, mulher que enfrenta quem lhe agride é chamada de serial killer, é isso mesmo?”. Com essa indagação, feita já próximo ao desfecho de sua história, o diretor René Guerra dá o tom do que pretende com Serial Kelly, sua estreia no formato longa-metragem. Afinal, sua história, por mais que esteja ambientada em tempo presente, se passa no Nordeste brasileiro, região que deu origem a Lampião e Corisco, expoentes de uma luta contra a opressão que, cerca de um século atrás, encontraram na violência a forma de reagir às agressões as quais eles e seus vizinhos eram sistematicamente afetados e que, por isso mesmo, foram dizimados pela mesma barbárie que tanto praticaram. Kelly, vivida em cena de forma fulgurante pela cantora Gaby Amarantos – debutando na tela grande como protagonista com imensa desenvoltura – é uma mulher que por diversas vezes se viu obrigada a pagar alto preço por ser o que é: de cor, periférica, artista, prostituta. Não por isso, porém, deixou de dar o troco à altura. Essa jornada de revanche e superação, no entanto, se garante pela força do elenco e pela segurança de sua trama, a despeito de uma produção equivocada e um formato que mais afasta do que aproxima de suas intenções.
Para tanto, é importante que se faça uma ressalva: o Papo de Cinema teve a oportunidade de assistir ao filme Serial Kelly em duas ocasiões. A primeira foi no final do mês de junho, quando de sua exibição na sessão de encerramento do 28o Festival de Cinema de Vitória – Reencontro. A segunda, meses depois, se deu em novembro, poucos dias antes da estreia oficial nos cinemas. E o que se percebeu foram dois longas distintos. O primeiro, melhor conduzido e sem tantas invenções, dizia o que pretendia de um modo direto e, ainda que mais tradicional, era capaz de estabelecer uma comunicação direta com o espectador, graças ao fácil entendimento do que discorria em cena. Na versão posterior, que foi lançada comercialmente, percebe-se uma nítida interferência de pós-produção, principalmente no trabalho de montagem, reordenando cenas, eliminando respiros que auxiliavam na compreensão dos fatos e propondo um jogo de flashbacks que, entre idas e vindas, tentava soar mais dinâmico – ainda que tudo que tenha conseguido foi aumentar a confusão. É de se lamentar, portanto, que o grande público só terá acesso a essa leitura final. É de se imaginar os embates que diretor e produtores tiveram a respeito do que seria cortado ou não. Numa queda de braço como essas, infelizmente, não causa espanto descobrir que é a vontade de quem paga as contas – e não a do autor das ideias – que acaba prevalecendo.
Enfim, em meio a uma condução um tanto esquizofrênica – em certa passagem, Kelly fica feliz em recuperar o macaco de estimação que nem havia sido dado como perdido (obviamente, a cena em que o animal é raptado terminou eliminada) – salva-se o ímpeto de uma mulher em busca de sua voz, por mais que os métodos por ela escolhidos para se defender desse mundo não sejam os mais apropriados. A primeira cena – não a que se vê agora, do enfrentamento com os policiais que estão no seu encalço – já mostra Kelly se livrando de um amante abusador em meio a um banho de mar. Um mergulho mais demorado elimina o incômodo, e como se livre de uma missão já cumprida, ela deixa a praia sem olhar para trás, e aproveitando ainda para fazer um lanche pelo caminho. Faísca (Alice Marta Maia, tão marcante quanto em Carvão, 2022, porém com menos tempo a seu dispor) é a puta velha que lhe dará a real: é chegada a hora de partir. E enquanto sai em busca de um rumo, Kelly irá somar paixões e corpos pelo caminho.
Conhecida em programas de auditório e em rádios populares, Gaby Amarantos havia feito apenas participações especiais no cinema, seja como ela mesma, em Crô: O Filme (2013), ou numa versão de si, em De Perto Ela Não é Normal (2020). O namoro com a câmera, no entanto, vem de longe, e pode ser comprovado não apenas em videoclipes de suas canções, mas também em séries e até telenovelas. Ou seja, estava mais do que na hora de ter um filme para chamar de seu. Rene Guerra, que até então havia dirigido curtas como Vaca Profana (2017) – premiado no Festival do Rio – e o média Guigo Offline (2017) – premiado no Festival Mix Brasil – é o responsável por lhe proporcionar o espaço devido. Ele demonstra um olhar interessado por suas personagens – além de Kelly, a vítima empoderada, há de se destacar também a investigadora Fabíola, defendida com determinação por Paula Cohen (Divino Amor, 2019). O filme, aliás, se justifica pelo embate entre as duas. No entanto, falta uma mão firme que saiba não apenas o que dizer, mas também como e, acima de tudo, a quem.
Pois, do jeito que agora se apresenta, causa no mínimo estranhamento imaginar qual seria a audiência almejada pela equipe por detrás das câmeras de Serial Kelly. Por vezes por demais popular – como na perseguição policial ou nos números musicais – em outros incorre em um direcionamento de nicho – o trecho com as drag queens ficou solto e sem sentido – isso quando não perde o controle e investe em apostas mais radicais, com cenas de nu frontal (masculino e feminino) ou de violência gráfica, o que certamente irá afastar aquele meramente curioso na plateia. Enfim, sem saber para onde ir, ao menos o conjunto serve para validar o talento superlativo de Amarantos, que agora se confirma pronta para voos ainda mais altos e ambiciosos também na ficção audiovisual. Afinal, força para defender um discurso repleto de energia e urgência ela tem de sobra. Carece, ao menos aqui, apenas de um horizonte para o qual se dirigir.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Robledo Milani | 5 |
Alysson Oliveira | 4 |
Alex Gonçalves | 2 |
MÉDIA | 3.7 |
Essa vibe trash de comédia com momentos de tensão e o visual nordestino casou muito bem. Tem uma cara de ser brabo. A Gaby é uma ótima atriz. Brasil servindo e entregando. Cinema nacional é bom demais