Crítica


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Sinopse

Familiar e ao mesmo tempo estranho. O inesperado da angustiante estranheza. Um ensaio documental com lapsos poéticos de um cinepoema de found footage.

Crítica

O cinema que Carlos Adriano vem realizando, sobretudo na sua série “sem título”, é o da associação. Assim, a principal função do diretor passa a ser reorganizar o existente, combinar elementos de formas, texturas e fontes distintas para criar o supostamente novo. Em sem título #6: o Inquietanto, ele novamente provoca esse mergulho cujo experimentalismo passa pela articulação das obras alheias. O neologismo do título aponta ao conceito freudiano do unheimlich, o estranho, aquilo que deveria permanecer recalcado, mas que acaba irrompendo violentamente para provocar a sensação de inquietação. Para isso, ele evoca inicialmente Antonin Artaud e Robert Walser, numa operação de reverberação obviamente dependente do conhecimento prévio do espectador a respeito dessas figuras. Aliás, aos familiares com os componentes reutilizados, o curta oferece uma lógica interessante. Aos que os ignoram, ele se revela como uma viagem fundamentalmente sensorial.

Carlos Adriano lança mão de clássicos do cinema, tais como A Paixão de Joana D’arc (1928), dentro dessa ideia de conjuração a partir de fontes inicialmente estranhas umas às outras. Do ponto de vista visual, sem título #6: o Inquietanto exibe a liberdade de não querer se encaixar nos ditames do mercado cinematográfico, vide as fricções entre texturas, as adulterações, as duplicações, enfim, tudo à disposição do cineasta como possibilidade de (des)domesticar. Geralmente, filmes se expressam por meio de um itinerário estético-narrativo coeso, com fotografia bem definida, entre outras escolhas criativas. Aqui, o realizador é um usurpador sem pudores de constituir unidade a partir de fragmentos infamiliares, como o visual límpido de um filme hollywoodiano justaposto ao excerto de um longa-metragem japonês mudo provavelmente extraído de algum suporte não oficial, haja vista a má qualidade da imagem. Há uma precisão nesse percurso.

Mas, o que sem título #6: o Inquietanto tem de melhor é o diálogo entre dois filmes de bases e origens separadas por muitas questões primordiais. Carlos Adriano faz conversarem Uma Página de Loucura (1926) e Ilha do Medo (2010), tendo como pontos de encontro as tantas similaridades das tramas. O longa japonês fala de um marinheiro empregado como faxineiro num manicômio a fim de libertar a esposa que foi internada após afogar o filho deles. O dirigido por Martin Scorsese (com viés reverente) apresenta um homem que recalcou o fratricídio seguido de suicídio da esposa, numa espécie de fuga psicogênica em que assume a missão de encontrar uma lunática sumida. Evidentemente que a ciência prévia das semelhanças ajuda no processo de entendimento dessa prosa audiovisual com intenções poéticas. Entretanto, mesmo ao espectador desavisado, as justaposições deixam pistas suficientes para a perceptibilidade da conexão. Ambos os protagonistas são homens em instituições psiquiátricas lidando exatamente com engrenagens do unheimlich, do inquietante.

Outras peças são utilizadas como dispositivos, intuito esclarecido pelos créditos finais, pois não há uma sinalização explicativa ao longo do filme. Essa negação de uma periodização didática acontece porque sem título #6: o Inquietanto é, de fato, unidade autônoma feita de fragmentos estranhos entre si, embora em alguns momentos pareça uma colagem um tanto aleatória de frações dispostas como se naturalmente fizessem sentido automático em consecução. Carlos Adriano fomenta alguns atritos curiosos, principalmente o localizado na insuspeita intersecção entre os filmes de naturezas diferentes – um mudo, pouco visto em comparação com o outro, hollywoodiano, bastante conhecido. Sua experimentação desamarrada com as imagens é ora instigante, ora reiterativa. Em certos instantes, o filme parece um jeito de exteriorizar elos que fazem sentido apenas ao autor. No entanto, o resultado da conjugação de sons e imagens ressignificadas é potente suficiente para prescindirmos da adesão irrestrita. É bonito ver essa liberdade pujante em curso.

 

Filme assistido online no 14º Cine Esquema Novo, em abril de 2021.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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