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Sinopse

Depois de uma briga com a esposa, Renata é morta com um tiro dentro de casa. Valdir, o marido da vítima e delegado da região, é acusado de cometer o assassinato e forjar um assalto para justificar a morte. A filha do casal, Nina, uma jovem na fila de espera por um transplante de órgãos, precisa descobrir a verdade antes que pessoas inocentes sejam responsabilizadas pelo crime.

Crítica

É visível na produção baiana a vontade de se colar aos códigos dos filmes policiais hollywoodianos. Nina (2021) imagina sequências chocantes de “crimes passionais” (nome romantizado para feminicídios), policiais de personalidades dúbias, mocinhas frágeis esperando o resgate dos fortes protagonistas, gravações secretas, perseguições pela estrada, troca de tiros, cirurgias perigosas, testemunhas oculares sequestradas e presas em cativeiro. A trilha sonora sugere um suspense profundo, enquanto a chuva lá fora projeta sombras nos cômodos durante o assassinato. Os atores gritam, proferem ameaças, fazem cara de mau. O diretor Paulo Alcântara trabalha em tom maior, tanto com o elenco quanto na construção das imagens. Apesar do título oficial, a jovem Nina constitui uma coadjuvante no projeto que porta seu nome: os verdadeiros protagonistas são os policiais Valdir (Nelson Freitas) e Fábio (Marcos Pasquim), medindo forças em disputas de solenidade sepulcral. O cineasta não tem medo de apostar numa gravidade quase caricatural, beirando o cômico, quando seus atores soltam risadas maléficas, trocam ameaças ao som de violinos e seguram duas armas em punho durante uma audiência. Aqui, quanto mais, melhor. 

O problema se encontra na lacuna evidente entre pretensões e o resultado concretizado em tela. Há uma série de falhas de roteiro, montagem e construção de personagens que seriam retificadas com facilidade caso o texto passasse por novos tratamentos e a pós-produção ganhasse um trabalho refinado. Em primeiro lugar, os investigadores da trama nunca investigam. Eles passam os dias sentados no escritório, tomando café e confabulando a respeito do único caso que lhes passa pela frente: a morte de Renata (Ingra Lyberato), esposa do chefe, suposta vítima de um assalto. A cena do crime é suspeitíssima, no entanto, Fábio e Vitor (Heraldo de Deus) esperam que alguma pista ou envelope do céu caiam do céu. “Não acha que tem algo muito estranho?”, pergunta um deles, duas vezes consecutivas. Então, seguem sentados. O comportamento de Valdir possui inconsistências óbvias, no entanto, as eventuais pistas surgem por acaso (um colega cruza com o chefe na rua) ou são ignoradas (quando Vitor o visita). O roteiro se delicia com coincidências improváveis de pessoas que chegam à casa, ou à cena do crime, na hora exata de desferir um tiro contra o assassino ou gravar acontecimentos secretos no telefone celular. 

Além disso, a construção de Nina incomoda bastante. A atriz adulta Raíra Machado interpreta uma adolescente de comportamentos infantis, dotada de ingenuidade incompreensível. Mantida em cativeiro, ela possui uma porta aberta à disposição, mas passa horas antes de pensar em fugir, e quando o faz, se converte num bicho assustado. Um desconhecido visita a casa, mas ela espera que o rapaz vá embora antes de gritar “Socorro!”. Os criadores desenham, através da garota, a figura menos verossímil que o cinema já apresentou de uma pessoa esperando por um transplante de órgão, e sobretudo, de uma paciente recém-operada. O texto fornece uma triste representação das figuras femininas, passivas e conformadas com suas posições domésticas ou subjugadas. O testemunho da morte da mãe em sua própria casa jamais serve ao empoderamento de Nina, enquanto a bondosa enfermeira Bia (Carol Alves) presencia uma cena em que o marido bêbado e violento grita com a esposa e a ameaça, porém depois se exclama: “Coitado do seu Valdir!”. A transformação do delegado truculento num pai amoroso, e verdadeira vítima do caso, sublinha o conteúdo misógino. Visto que o longa-metragem elege um novo vilão, ainda mais perverso, trata de desculpar o anterior. “Agora sou eu que preciso de você”, suplica a filha querida ao sujeito que a sequestrou horas atrás e forjou um crime com o cadáver profanado da mãe. Romantizam-se perigosamente os relacionamentos abusivos.

Já a construção estética transmite uma vontade de potência exacerbada para a obra que necessitaria de um mínimo de contemplação ou respiro. Como o assassinato da esposa do delegado não produziria comoção? A mulher não tem amigos, vizinhos, colegas de trabalho que sintam a sua falta? O que dizer do luto de Nina, em estado perene de torpor? O diretor prefere acelerar as atividades, ao invés de desenvolvê-las: durante uma perseguição, o policial liga para o homem que segue em segredo, e quando o perde, dispara um “Caramba, perdi!”. Já o outro segue em disparada para entregar os óculos de sol do chefe. Instaura-se a premissa da urgência, apesar de os protagonistas jamais se dedicarem de fato ao episódio de feminicídio. Nina se destaca pela aparência artificial de tensão (montagem truncada, música onipresente) simulando um suspense ausente em imagens (devido ao conformismo da garota e à inutilidade de seu testemunho). Os criadores apostam numa aparência de agitação, em oposição ao ritmo ditado inerentemente pela história e a construção dos personagens. Em outras palavras, esforça-se para parecer um thriller emocionante, sem fornecer elementos capazes de sustentá-lo.

É uma pena que tais fragilidades comprometam o resultado, visto que a iniciativa de uma ficção policial na Bahia, valorizando a geografia local, contribuiria a descentralizar o eixo da produção focada no Sudeste. Entretanto, os avanços são modestos: a trama é estrelada por dois atores paulistas, brancos, enquanto o elenco negro e baiano ocupa papéis secundários. Pouco da cultura local impregna o resultado cujo referencial se encontra no modelo norte-americano. Através deste longa-metragem, o cinema brasileiro oferece mais uma obra “de ação”, masculina e brucutu, onde os homens empunham armas e ditam os rumos da aventura, enquanto as mulheres permanecem acorrentadas em casas de campo, cisternas (A Cisterna, 2021), salas de aula (Volume Morto, 2019) e porões (Tormento, 2021), sofrendo e aguardando o resgate. Existe, neste aspecto objetificante da figura feminina, um estereótipo nocivo que precisaria ser superado pelas produções nacionais, em especial por aquelas de jovens cineastas em busca de fortes emoções. Há um discurso contraproducente neste referencial de empolgação associado à violência contra a mulher e à atividade irrefletida e “passional” dos homens.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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