Crítica


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Sinopse

Lorena é uma jornalista investigativa conhecida pelas denúncias contra políticos corruptos em seu programa de televisão. Certa noite, ela é sequestrada e mantida no fundo de uma cisterna pelo agressor. Enquanto pensa numa maneira de escapar, tenta descobrir a identidade e as motivações do criminoso.

Crítica

Certo dia, Lorena (Fernanda Vasconcellos) é atacada, sedada, jogada ao fundo de uma cisterna e mantida presa por um carcereiro anônimo. A jornalista, conhecida por denunciar atos de corrupção em seu programa de televisão, teria inúmeros inimigos capazes de tal ato. De que maneira a heroína poderia sair do lugar fechado e profundo, ou descobrir a identidade de seu algoz? A premissa deste suspense sugere forte tensão, do tipo que a indústria norte-americana gostaria de abraçar. No entanto, o aspecto mais chocante do projeto se encontra na inconsequência da abdução: o mundo ao redor segue muito bem sem a apresentadora. Os colegas da televisão a substituem no dia seguinte. A mãe idosa e a filha pequena desaparecem do roteiro após o sequestro: estariam desesperadas, tristes, com saudade? As investigações policiais são praticamente nulas, assim como as tentativas da protagonista em sair do espaço onde se encontra. “Aqui tem bicho, faz frio!”, reclama Lorena ao carcereiro, embora o espectador nunca perceba qualquer um destes elementos. Uma vez presa no buraco escuro, a mulher apenas espera, chora, se desespera, sem que a trama saiba ao certo o que fazer com ela. Talvez involuntariamente, o diretor e roteirista Cristiano Vieira apela ao medo da descoberta de que não fazemos tanta falta ao mundo assim - uma crônica niilista, enfim.

O autor dificulta a própria tarefa com o dispositivo da cisterna. A equipe criativa encontra séria dificuldade de estabelecer alguma forma de dinâmica dentro do espaço vazio, profundo e mal iluminado. Neste caso, mostra-se incapaz de alterar os enquadramentos, imprimir ritmo às cenas, fornecer estratégias de fuga. Os instantes no local são repetitivos, transparecendo as limitações da montagem: em determinada sequência, Lorena tenta fugir durante o dia (vide os raios de sol atravessando a tampa superior), encontra-se à noite quando chega ao topo (sem que a montagem sugira um salto temporal) e depois volta ao dia quando o adversário aparece. O roteiro poderia apelar à solidão, à paranoia, ou ainda oferecer objetos passíveis de ação, como um isqueiro ou telefone celular. Entretanto, permite apenas que a jornalista passe horas e horas cavando um pequeno buraco com uma garrafa d’água, sem utilizar a óbvia tábua/degrau à sua disposição. Desprovida de ações posteriores ao sequestro, a protagonista passa a maior parte do filme a suplicar e gritar lá dentro. Ao perceber que o conflito do cativeiro seria insuficiente para sustentar um projeto inteiro, o longa-metragem prefere se dedicar à vida do sequestrador. 

Há um componente eticamente contestável, e mesmo misógino, em se apropriar do corpo e da liberdade de uma mulher para então transformá-la em coadjuvante da própria história. O filme elege outra “vítima" mais interessante: Julian (Cristobal Tapia Montt), trabalhador chileno de baixa renda que, podendo se deslocar livremente pela cidade, oferece melhores possibilidades de interação à mise en scène. O sujeito cabisbaixo e tímido, amante da música e sem real vocação ao crime, constitui a figura por quem o discurso se lamenta de fato. Enquanto se esquece da família de Lorena, o roteiro mergulha a fundo na relação do caminhoneiro com a filha, o patrão e o melhor amigo. É curioso que, dadas as circunstâncias, Vieira proponha a identificação do espectador com o homem agressor, ao invés da mulher agredida. Os objetivos dele com o sequestro soam inverossímeis a princípio (o que ele pretendia obter a partir deste gesto?), porém se tornam ainda mais absurdos no terço final, quando o rapaz se revela alvo de uma grande injustiça. A questão do ponto de vista resulta problemática nesta obra de posicionamentos políticos e morais ambíguos: tentando compreender ambos os personagens, mostra-se condescendente com as piores atitudes dos dois.

A Cisterna (2021) hesita entre enxergar em Lorena uma grande jornalista dotada de coragem e força ímpares, ou uma repórter sensacionalista, cujo programa se aproxima de um Cidade Alerta razoavelmente progressista, porém grosseiro na tendência à exploração das mazelas alheias. O relacionamento com o patrão faria dela uma figura autônoma, com direito de obter prazer onde bem entende, ou apenas uma aproveitadora, tentando subir na carreira? As incansáveis acusações de que seria uma mãe ruim por trabalhar em excesso e as atitudes estúpidas na tentativa de escapatória apontam para a segunda opção. (Depois de Volume Morto, 2019, o cinema brasileiro poderia, fazendo o favor, parar de se divertir com a tortura de Fernanda Vasconcellos?) Já Julian tem seus atos justificados pelo aparente direito de vingança, confundido pelo filme com justiça. A certa altura, o roteiro simplesmente revela ao espectador onisciente um vídeo do que “realmente aconteceu”, absolvendo o pai carinhoso e minimizando a gravidade de seus atos. Nenhum policial, nenhum personagem chegou àquela conclusão: trata-se de uma conversa em off, nos bastidores, entre o diretor e seu espectador, abrindo um parêntese na narrativa para dizer: “Está vendo? Ele não é tão malvado assim”. 

O projeto ainda sofre com escolhas frágeis: a luta mal coreografada, dirigida e montada com o amigo Clendson (André Araújo); a obsessão curiosa da direção de arte por cenários e figurinos azuis; a frágil captação de som na cozinha e na casa do amigo. Em paralelo, Julian se vê desprovido de dilema pessoal em relação aos seus atos, e o patrão/amante (João Gott) possui uma atuação apática, entorpecida. Metáforas como a retirada do pai (representado por um boneco em miniatura) de dentro de uma garrafa soam risíveis. O longa-metragem tem dificuldade em conciliar maternidade e carreira; hesita entre condenar ou tolerar o programa de televisão, o sequestro e a violência dos homens. O resultado final sustenta a aparência de boa premissa que precisaria de novos tratamentos de roteiro, além de maior cuidado no desenvolvimento. Seus principais trunfos são os dois atores principais, seriamente comprometidos: Fernanda Vasconcellos soa muito natural nas interações com as amigas no trabalho, e com os familiares em casa; já Cristobal Tapia Montt oferece uma composição terna, apesar de embrutecida. Falta a figura de um produtor externo capaz de observar esta complica obra (a)moral e questionar os criadores: “Certo, mas o que vocês pretendem dizer a partir deste dilema? De que lado se posicionam? Que efeito esperam obter do espectador? O que pensam sobre os atos de um e de outro?”. Temas tão sensíveis no Brasil atual quanto fake news, feminicídio, punitivismo e independência feminina mereceriam um posicionamento firme, tanto discursiva quanto cinematograficamente.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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CríticoNota
Bruno Carmelo
3
Alysson Oliveira
6
MÉDIA
4.5

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