Crítica


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Sinopse

Débora é sequestrada por um psicopata e passa a viver num cativeiro, sendo constantemente estuprada. Diante da falta de alternativas, lhe resta tentar sobreviver, enquanto seu algoz toca um programa de rádio nas madrugadas.

Crítica

Em grande parte de Tormento, Débora (Nivea Stelmann) é somente um corpo brutalizado. Mantida em cativeiro por Divino (Luiz Guilherme), psicopata com arroubos religiosos, é constantemente estuprada, reduzida ao sofrimento que lhe cabe como uma existência vulnerável. Em quase nenhum momento ela é vista tentando reagir, revidar em alguma medida, mesmo ao ter à disposição objetos cortantes e/ou perfurantes, tais como facas e garfos. O cineasta Ricardo Rama é incapaz de sustentar essa passividade, que chega às raias do inverossímil, no pavor sentido por uma vítima obviamente cautelosa diante do sujeito que já se provou capaz de atitudes atrozes. No primeiro bloco do filme, o da contextualização, a personagem feminina principal é privada de voz, tem por função aguentar como pode a ação de um homem aparentemente acima de qualquer suspeita. Apresentador de um programa radiofônico romântico nas madrugadas cariocas, ele é tipificado como um vilão destituído de camadas/contornos. Nem mesmo a hipocrisia apontada – sujeito que fala de amor, mas destila ódio – ou a fé citada com traços de fanatismo o fazem ganhar densidade. Nem o trauma o preenche.

Além de um desleixo impressionante na delineação dos personagens, Tormento possui diversas falhas conceituais e de execução. O arco dramático da relação criminosa que Divino estabelece com a sequestrada é mal desenhado, vide a dificuldade de manter minimamente pulsante a pergunta ali obviamente implícita: por que ele está fazendo aquilo tudo? Aparentemente, o realizador está mais preocupado em construir cenas reiteradas de selvageria, sem ao menos justificar essa repetição (contraproducente) com uma intenção clara. Talvez o desejo fosse acentuar o sofrimento da vítima por meio de um processo de ratificação de gosto e efetividade bastante questionáveis. Na terceira vez (de várias) em que Nivea Stelmann é subjugada embaixo do corpo de Luiz Guilherme, provável colocar em xeque os motivos da insistência no aproveitamento dessa monstruosidade como um expediente dramático. Testemunhada antes, a violação poderia ter sua reincidência aludida sem prejuízo à atmosfera, pelo contrário, pois a variação lhe conferiria um ganho substancial.  De certo ponto em diante, parece que o roteiro fica andando em círculos, não sabendo bem o que fazer com o protagonista bipartido entre os homens público e o privado e, sobretudo, com a mulher chegando ao limite.

Dentro de uma lógica narrativa postiça, em que as guinadas do roteiro são tão artificiais quanto os desempenhos do elenco, a “esperada” resolução do mistério se dá displicentemente. Não que o interesse seja mantido frente à gratuidade pregressa, mas não somos levados compreender que Divino tem um problema singular com babás, o que configura a distorção psicológica encarregada de transforma-lo em perverso. Ricardo Rama apela a outra dinâmica de mau gosto (pelo modo como é mostrada) à revelação: a “lembrança” da babá do protagonista abusando sexualmente dele. É difícil levar a sério a manifestação das reminiscências dolorosas do personagem de Luiz Guilherme, porque ela é mostrada como um decalque visual de fantasias pornográficas, haja vista a atriz chegando ao ponto de insinuar o sexo oral contra um fundo pueril projetado em chroma key. No terço final de Tormento, exatamente no encaminhamento do desenrolar e do desfecho dessa coleção destrambelhada de desumanidades e afins, as pessoas se comportam de maneiras falsas. Há o privilégio de determinadas exigências do roteiro em detrimento da organicidade das condutas e das reações.

Exemplo disso, a cena de Débora finalmente conseguindo ascender aos cômodos superiores da casa, desvencilhando-se momentaneamente de seu captor. O que qualquer pessoa sequestrada por quase dois anos,  diariamente violada e tratada com desumanidade exasperante, faria ao escapar? Provavelmente não correr ao quarto do bandido e ficar vasculhando as pastas que comprovam a existência de outros crimes, como Débora inexplicavelmente faz. Nesse ponto, Tormento penhora sem pudores a coerência em virtude da necessidade de mostrar à personagem uma informação que a ela é inútil naquele instante, anteriormente oferecida de bandeja ao espectador. Também é duro de engolir o surgimento e o comportamento da polícia, bem como as conclusões apressadas com base em indícios obviamente frágeis. Ricardo Rama não estofa os personagens com qualquer substância, não trabalha bem os subtextos e passa longe de produzir tensão por meio dos aspectos formais (fotografia, som, montagem, etc.), assim carimbando o fracasso de seu projeto de thriller calcado num psicologismo rasteiro. Isso, claro, sem contar a inabilidade para mirar o corpo feminino dentro daquela circunstância aterradora, ao ponto de expor a nudez de Nivea Stelmann gratuitamente, não como indício da sua definição à mercê da sanha do cidadão religioso, supostamente sensível, mas capaz de atrocidades.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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