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Sinopse

Somente uma ameaça à própria existência pode mudar a rotina dos habitantes do pequeno vilarejo de Javé. Quando se deparam com o anúncio de que a cidade pode desaparecer sob as águas de uma enorme usina hidrelétrica, adotam uma ousada estratégia: decidem preparar um documento contando todos os grandes acontecimentos heroicos de sua história, para que o lugar possa escapar da destruição. Como a maioria dos moradores são analfabetos, a primeira tarefa é encontrar alguém que escreva as histórias.

Crítica

A pequena cidade de Javé – na verdade, não mais do que um mero vilarejo – está em vias de extinção. E não por causa de nenhum desastre natural, e sim por uma tragédia anunciada pelo governo: nas suas proximidades será construída uma imensa barragem, que deixará o local completamente submerso. Para impedir que isso aconteça, a população local recorre a uma atitude inusitada: ela descobre que, caso os prédios locais sejam tombados como “patrimônio da humanidade”, tal decisão extrema que determinaria o fim de todos precisaria ser revista. E que melhor modo de alcançar esse feito do que mostrando a todos a importância da região? Assim começa a se desenvolver Narradores de Javé, comédia dramática escrita e dirigida por Eliane Caffé que conquista o espectador não apenas pelo inusitado da proposta e a forma como uma ameaça externa é capaz de mobilizar toda uma comunidade – um sentimento facilmente relacionável – mas também pela excelência de um elenco em plena sintonia.

Com um objetivo em mente, os habitantes da minúscula, porém brava Javé só precisam de alguém que escreva um belo e convincente relato de todos os feitos relevantes que ali tiveram cenário, desde sua criação até o presente momento. Acontece que por lá não há um único capaz de escrever sequer o alfabeto de A a Z, quem dirá uma prosa mais refinada – são todos analfabetos! A única exceção é o vigarista Antonio Biá, personagem recebido com nítido gosto por um José Dumont em pleno domínio do seu potencial. Já expulso pela vizinhança por golpes antigos, o malandro tem agora uma oportunidade rara de redenção. Com a mudança de situação, ele, que até então era rechaçado, tem os olhos de todos voltados na sua direção, assim como o poder de quem possibilitará a salvação do povoado. Caberá a ele, então, tomar – ou não – a atitude certa.

Narradores de Javé é um dos melhores filmes produzidos pelo cinema nacional no início do século XXI, e uma alegação dessa não se faz de modo leviano – na conta, pesa tanto a excelência técnica como também a habilidade da realizadora em equilibrar o pitoresco e inesperado com aquilo que é muito próprio do brasileiro. Ao mesmo tempo em que é único em sua originalidade, consegue ser universal pelos temas que aborda, como inveja, orgulho, paixão e honestidade – sentimentos que podem ser identificados entre os diversos tipos que povoam o desenrolar da história. Cada morador confere a si próprio uma relevância maior no destino da cidade, a ponto de cegá-los de tal maneira que nem mesmo o fim próximo poderá uni-los. Biá é um ser no lugar certo e na hora precisa, situado num meio termo entre o canalha e o adorável, digno de pena, mas também de desprezo. Sua sabedoria é muita, igualmente como a ingenuidade e despreparo. Uma figura como essa poderia facilmente ser rejeitada, não estivesse sendo defendida por alguém como Dumont, que não só entende o desafio que tem pela frente, como também o enfrenta com desgarrada entrega e paixão.

Grande vencedor do antigo Festival de Recife (hoje conhecido como Cine PE) e do Festival do Rio, Narradores de Javé ainda percorreu o mundo, obtendo reconhecimentos nos eventos de Bruxelas, Fribourg (Suíça), e Roterdã, entre outros. Ainda obteve troféus no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro – o Oscar nacional – e foi indicado ao Prêmio Guarani de Cinema Brasileiro, a maior premiação da crítica do país. Com montagem afiada de Daniel Rezende (indicado ao Oscar por Cidade de Deus, 2002), este projeto também marca a retomada da parceria de Caffé com Dumont – os dois fizeram juntos o igualmente impactante Kenoma (1998), um dos marcos da retomada do cinema nacional. Com todos os elementos nos seus devidos lugares, essa é uma mistura que não teria como, de qualquer modo, dar errada.

Eliane Caffé consegue neste seu segundo trabalho em longa-metragem atingir resultados dignos de uma artista mais experiente, que sabe o que transmitir e assim o faz com competência e sem atropelos, evitando o excesso na mesma medida em que propõe somente o que poderá ser desdobrado com eficiência. Sem reviravoltas excessivas ou floreios desnecessários, ela também é capaz de reconhecer o momento certo para deixar que os outros se pronunciem, e, assim, conferir um colorido especial ao seu discurso. Narradores de Javé funciona como síntese elucidativa a respeito dos mistérios do convívio e da natureza humana, partindo de um foco singular para englobar reações comuns a todos, seja onde estiver o espectador. Uma obra que diverte como poucas, ao mesmo tempo que consegue incitar à reflexão e ao auto-conhecimento.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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