Sinopse
Primogênita de um honrado guerreiro, Mulan decide tomar o lugar do pai na frente de batalha quanto o imperador chinês convoca um homem de cada família para servir o exército numa situação de crise. Ela se disfarça para combater os invasores, desafiando não apenas os saqueadores, mas também as tradições.
Crítica
Há mais de vinte anos, os Estúdios Disney deram um importante passo rumo a uma bem-vinda diversidade étnica em suas produções com o lançamento da animação Mulan (1998), que apresentava, pela primeira vez, uma personagem oriental como protagonista. Outros títulos do gênero se seguiram, como Atlantis: O Reino Perdido (2001), com Kida, uma monarca submarina, A Princesa e o Sapo (2009), com Tiana, a primeira princesa negra, ou Moana: Um Mar de Aventuras (2016), em que a personagem-título fazia parte de uma tribo da Polinésia. São esforços tímidos, mas de grande impacto – e que, por isso, merecem ser reconhecidos. Bem diferente é o cenário no qual este Mulan, a versão live action da mesma história, agora se apresenta. Afinal, após os sucessos de A Bela e a Fera (2017), Aladdin (2019) e O Rei Leão (2019), que também eram adaptações mais realistas dos respectivos contos animados de mesmo nome, todas com mais de US$ 1 bilhão arrecadados nas bilheterias mundiais – a garota guerreira foi escolhida como próxima da linha com um único objetivo em mente: conquistar o mercado chinês, que cada vez mais se consagra como o maior do mundo (superando até mesmo os Estados Unidos). Ninguém contava, no entanto, com uma pandemia global, uma quarentena sem data para acabar e salas de cinema fechadas por todos os lugares. A solução foi um lançamento discreto, direto em streaming (ao menos na maior parte dos países). A surpresa, porém, é perceber que esse parece ser um destino mais adequado à produção.
Isso porque o longa dirigido pela neozelandesa Niki Caro (que estreou com o ótimo Encantadora de Baleias, 2002, mas nunca mais conseguiu repetir o mesmo impacto) não só é escasso de ideias, como também transita por terrenos perigosos, revelando-se incapaz de adequar para os tempos atuais uma história feita duas décadas atrás. Em linhas gerais, Mulan é uma jovem (Yifei Liu, apenas eficiente) que decide se juntar ao exército chinês. Como a trama se passa há muitos séculos, ela assim o faz disfarçada como rapaz, e o que a leva a isso é a necessidade de proteger o pai quando esse é convocado para fazer parte dos esforços bélicos da nação contra o ataque de inimigos que colocam em perigo a própria continuidade do Império. Da infância e juventude, quando não era vista com bons olhos pelos vizinhos por ser agitada e intensa demais em tudo que fazia, acaba sendo recriminada pela casamenteira da vila e, caso se apresentasse tal como é, também seria recusada pelas forças armadas. Assim, é somente sob a identidade masculina que, enfim, consegue ser quem ela é de verdade.
É neste ponto que o filme abre espaço para duas discussões importantes, mas que, no entanto, terminam por ser ignoradas. Primeiro, é a necessidade desta mulher – e de todas as outras iguais a ela, por consequência – de levarem uma vida apenas tentando se encaixar em padrões determinados pelos homens, ainda que estes, muitas vezes, se revelem mais fracos em comparação. Do ambiente familiar, formado por um homem (o pai velho e cansado) e três mulheres (a mãe, que mantém a ordem da casa, e as duas filhas, sob as quais a esperança de um futuro melhor para todos é depositada), até no meio das grandes batalhas, quando será a presença dela que terá função determinante nos destinos dos envolvidos, é curioso como o tema do empoderamento feminino grita forte em cada sequência, apenas para ser rapidamente jogado em um segundo plano diante de debates menos urgentes, como “respeito ao nome” ou “honestidade uns com os outros” – mesmo quando não lhe é permitido, sob qualquer hipótese, se assumir.
Há um outro debate que também termina sendo jogado para debaixo do tapete, que diz respeito à evidente atração do colega Honghui (Yoson An, hábil em criar uma dubiedade necessária ao personagem) pela protagonista – um sentimento que começa cedo, quando ele ainda a vê como um rapaz igual a ele. Por mais que o disfarce de Mulan seja no nível do óculos do Clark Kent – para ela, basta uma armadura e os cabelos presos para se apresentar como homem – absolutamente ninguém em cena chega a suspeitar do seu gênero sexual. Honghui chega a procurar pelo amigo quando esse (essa) está sozinho no alojamento, ou quando se afasta para tomar banho longe dos demais. Ou seja, se trata de uma evidente relação homossexual prestes a ser desenhada, que em nenhum momento chega a ser debatida. Quando a verdade à respeito dela vem à tona, não há nenhuma mudança significativa de comportamento por parte dele. De quem, afinal, ele gosta? Do colega tímido ou da moça valente?
Por mais polêmicos que estes temas possam parecer, constituem parte intrínseca dessa lenda chinesa de muitas gerações, aqui tratada de maneira convencional e sem grandes brilhos. O embate com a vilã, a bruxa Xianniang (Gong Li, a melhor do elenco, seja pela força que carrega no olhar, como também pela presença imponente pela qual se manifesta), poderia render mais – pois, como chega a ser dito, ambas são muito mais parecidas do que gostariam. No entanto, resignam-se em se apresentarem como peças de manobra dos personagens masculinos. Enfim, é justamente assim que Mulan se apresenta: mulheres poderosas que, pelas convenções sociais nas quais estão inseridas, passam suas vidas tentando se encaixar nas expectativas e modelos de comportamentos ditados pelos homens ao redor delas, tudo para não abalar as frágeis convicções destes. Uma mensagem que talvez tenha encontrado espaço no século passado, mas que hoje não mais possui relevância. É muito esforço para pouco a ser dito, e a Disney sabe disso – assim como também reconhecem os seus espectadores.
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