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Sinopse

Um grupo de criminosos sentenciados se voluntaria para uma missão espacial. Entre testes de inseminação artificial e a necessidade de rumar ao desconhecido no cosmos, os sobreviventes vão sentindo o peso de existir nesse limbo.

Crítica

Filmes ambientados no espaço frequentemente perseguem os enigmas da existência. O isolamento, a infinitude da escuridão, mistérios pairando na vastidão do desconhecido, tudo isso acaba instigando a mente dos criadores a refletir sobre os limites da fauna humana lá onde as fronteiras são abstratas. Os paradigmáticos 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968) e Solaris (1972) conjugam física e metafísica nesse mergulho num buraco negro, tentando nos conectar com aquilo que não necessariamente precisa ser definido, mas encarado. Exemplares recentes, tais como Interestelar (2014) e Perdido em Marte (2015), por exemplo, se inclinam mais à aventura, embora o primeiro disponha de um arsenal de conceitos devidamente destrinchados que remetem à filosofia. High Life, ficção científica da cineasta francesa Claire Denis, acena diretamente à tradição fomentada pelas realizações de Stanley Kubrick e Andrei Tarkovsky, sobretudo pela distância tomada das definições peremptórias e por compromete-se com o insondável, investigando-o sem almejar soluções.

O tempo é essencial em High Life. Denis embaralha cronologias e com isso acresce densidade à sua dinâmica perturbadora. Sim, pois, embora os personagens fiquem confinados na nave, ou seja, que os limites da ação sejam claros, a dúvida – estão à deriva ou mesmo numa missão tão longa quanto improvável ao ciclo humano? – respalda um desnorteamento vital. Portanto, diferentemente de boa parte das experiências cinematográficas que chegam diariamente ao nosso circuito, nas quais ao espectador é dada uma noção o mais exata possível sobre quando e onde as histórias estão se passando, aqui esses suportes são deliberadamente retirados para aturdir. Há um convite formal para embarcar numa cosmologia que, análoga ao recôndito espaço sideral, não contempla as respostas fáceis. E a imprecisão dos personagens reforça a meditação com ares de natural obscuridade. A solidão é articulada como uma sina inescapável, um traço humano trágico e fundamental.

Monte (Robert Pattinson, em mais um excelente trabalho de introspecção) é apenas um dos vários apenados recrutados à missão suicida de comprovar (ou não) a viabilidade de extrair energia ilimitada dos temíveis buracos negros. Uma parcela da melancolia vigente está em saber que para entender o fenômeno será preciso chegar perto dele. Assim, como o mitológico Ícaro, se torna inevitável “queimar as asas” tão logo se acheguem dessa sua versão do astro-rei. E Claire Denis reflete essa atmosfera de inexatidão na expressividade das imagens, intercalando distorções simples, mas absolutamente eficientes, com longos períodos de silêncio brevemente quebrados por rompantes de fúria ou quiçá pela manifestação de uma inviabilidade exasperante. Isso, vide a carga retórica da imagem banalmente retorcida pela estrutura do vidro interposto entre o sujeito e a câmera curiosa. Porém, o plano somente possui impacto porque faz parte de uma proposição estético-narrativa bastante meticulosa. Sons, ruídos, a investigação sutil das intimidades e a valorização das circunstâncias esdrúxulas, como a masturbação performática da cientista, são harmonizados minuciosamente.

Do simbólico de High Life, é importante frisar a alusão aos conceitos galvanizados pelas lógicas do cristianismo. Dibs (Juliette Binoche), a encarregada de colocar em prática a inseminação artificial no espaço, é uma espécie de versão feminina do Deus colérico do Velho Testamento. Essa analogia fica escancarada quando ela mexe os pauzinhos para concretizar a fertilização em alguém sequer consultada sobre ser mãe. Boyse (Mia Goth) é transformada numa versão distorcida (adiante desesperada) da Maria instada pelo dogma a aceitar a geração de Jesus em seu ventre. A falta do vínculo sexual no processo reforça a alusão ao milagre descrito na bíblia cristã. Todavia, o extraordinário agora é obra da ciência. Ainda no que tange ao aproveitamento dessas rimas com a mitologia religiosa, Monte pode ser entendido como um Adão moderno, cuja Eva não aguentou a pressão desse paraíso artificial, com direito ao jardim do Éden improvisado, e encontrou um jeito de ser livre.

Desprovido do Deus figurado, sendo referencial a quem surge alijada de concepções que não as suas, Monte assume o lugar da figura patriarcal central. Sintomático que, lá pelas tantas, a menina nascida inocente depois das perversidades (pecados?) que a precederam se ponha a orar. Questionada pelo pai, sujeito embotado pela privação daquilo que efetivamente o constituía como um ser social, a vivaz jovem diz que resolveu fazer aquilo para "ver como era". Ela aprende ao reproduzir. Depois de ver imagens aleatórias de pessoas elevando preces ao firmamento, ela as mimetiza. Habitantes de um além-céu, limbo em que não cabe grande parte dos códigos regentes no planeta azul, à dupla resta explorar ainda mais o desconhecido e jogar-se de cabeça naquilo que ainda pode fustigar a ânsia pelo novo. Claire Denis faz de High Life um filme que oscila engenhosamente entre apresentar as refrações como alternativas – nesse sentido, o prisma distorce o código para lhe conferir outro significado – e a partir delas apontar ao fascínio diante do inescrutável, a essa nossa ignorância persistente.

 

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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