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Sinopse

Depois de um assalto a banco que resulta em diversas mortes, incluindo de uma criança, Hero é preso pelo poderoso Governador. Mas quando uma garota é raptada, Hero será o único capaz de resgatá-la em Ghostland, uma terra perigosa e sem regras.

Crítica

Ghostland: Terra Sem Lei (2021) constitui um ótimo ponto de partida para discutir a percepção de qualidade no cinema. Entre os colegas críticos que se entusiasmaram com esta produção, foi comum encontrar uma defesa da ousadia enquanto valor essencial. O filme dirigido por Sion Sono recebeu elogios ao combinar, numa única aventura, o cinema de samurais, a ficção científica, os zumbis, o faroeste e a fantasia; associados ao tom de paródia, de realismo fantástico, de fábula kitsch. De fato, estes registros não costumam conviver dentro de uma única obra. Para um circuito cinematográfico sobrecarregado de sequências e refilmagens de marcas consagradas (a presença de Homem-Aranha e Matrix dominando as salas despertam a impressão de que regredimos 20 anos), a ousadia se converte numa virtude considerável. Poucos cineastas teriam a coragem de explodir o testículo de seu personagem principal e mostrar o pedaço de carne no chão, ou então de transformar o calvário de um povo numa cena musical, ou filmar o calabouço de mulheres escravizadas com os dispositivos falsos de uma produção teatral. Para o bem ou para o mal, o cineasta faz diferente das convenções esperadas do cinema industrial, algo que parece ter cativado inúmeros cinéfilos por si só, retoricamente.

Esse primeiro ponto conduz ao segundo: o fator surpresa. A condução tresloucada desta aventura-de-ação-e-ficção-científica-com-toques-de-suspense mergulha o espectador num trajeto impossível de antecipar. Portanto, existe um senso de alerta, um apelo à atenção e compreensão: como assim, a garotinha chorosa tira uma metralhadora poderosíssima de lugar nenhum e sai atirando nos adversários? O que impede as mulheres de fugirem às garras do Governador, e o povo transtornado de escapar à miserável Ghostland? Cada plano introduz novos personagens misteriosos, roupas improváveis, cenários impensáveis. A rasteira no público se converte num objetivo em si (em chave retórica, mais uma vez): o prazer se encontraria na possibilidade de se perder, de encontrar o esquisito, o confuso, o cafona, o maluco. O torpor capaz de provocar reações do gênero “Não acredito que o diretor acabou de fazer isso” se converte num ato de bravura por si só. Os olhos anestesiados pelas fórmulas desgastadas das plataformas de streaming e pelos blockbusters acabam valorizando, em contrapartida, o pressuposto da invenção — pouco importa para onde ela nos leve. Em outras palavras, aprecia-se a explosão dos códigos, ainda que os escombros não necessariamente produzam algo interessante ou esteticamente intrigante. Aplaude-se a força o gesto.

Por este prisma, a produção japonesa-norte-americana seria uma obra-prima de esquisitice autoral e fuga a fórmulas consagradas. Resta saber se os valores da ousadia e da imprevisibilidade bastam para esgotar a leitura de uma obra, e se deveriam se sobrepor a outros valores — especialmente aqueles relacionados à coesão, coerência e à força do discurso. Em termos de estrutura, Ghostland: Terra Sem Lei oferece um caos completo — algo interpretado como expressão de uma liberdade artística, conforme vimos. Ora, Sono se diverte em construir um mundo novo enquanto priva seu espectador de chaves de leitura para tantas metáforas. Diversas produções fantásticas dedicam tempo considerável (excessivo, até) explicando quem são os personagens, de onde vêm, quais seriam seus objetivos, contra quem lutam, através de quais meios e artefatos. Aqui, o herói chamado apenas de Hero (Nicolas Cage) se desloca em sequências desprovidas de contextualização imagética ou narrativa. De repente, ele se encontra num saloon típico do western, vestido de lutador de sumô. Gueixas pós-modernas fotografam o homem com um celular contemporâneo, enquanto a geografia sugere algo retrô — uma espécie de cidade fantasma, cenográfica. A mulher de fala incompreensível, as vítimas cobertas com pedaços de manequins, a pressão para segurarem o tempo e outras dezenas de símbolos surgem de lugar algum. O espectador precisa deduzir a função que desempenham neste meio. 

As cenas poderiam se articular em ordens distintas, sem prejuízo ao resultado. Caso Bernice (Sofia Boutella) surgisse com roupa de astronauta, ou o psicopata Psycho (Nick Cassavetes) adquirisse poderes com suas queimaduras, e o Governador (Bill Moseley) dirigisse uma carroça, não chocariam ninguém. O diretor atinge tal nível de aleatoriedade que aparenta estar brincando sozinho com bonecos, sem uma finalidade artística ou de comunicação precisa — ele produz essas traquinagens porque pode. O aspecto de inovação se confunde com inconsequência, numa jornada onde os meios constituem os fins. Hero tem à disposição um carro potente de tanque cheio, mas prefere sair dirigindo uma bicicleta. Uma criancinha se depara com um assalto a banco, onde todos gritam desesperados, mas insiste em oferecer balas aos assaltantes, com um sorriso no rosto. O Rato (Young Dais) veste roupas metálicas que brilham no escuro, porque assim desejam os criadores, enquanto Hero veste um capacete de futebol americano enferrujado, além de uma mão-metálica-espada. Quem sabe Takato pudesse entrar no vilarejo com um elefante, ou a deusa de branco saísse voando. Por que não? Quando tudo é suspensão da descrença e ruptura de códigos, nada realmente o é. Assim como as explosões ininterruptas de Michael Bay produzem um tédio interminável, a necessidade de surpreender e pregar novos truques a cada cena reduzem a obra ao jogo de manipulação espectatorial. O resultado é consistente apenas na inconsistência.

Ao final, resta a constatação de encontrarmos um longa-metragem único, algo de que poucas pessoas devem discordar. Talvez a atenção considerável dada a Ghostland: Terra Sem Lei nos streamings nos diga muito mais sobre o estado do cinema em 2021 do que sobre suas qualidades intrínsecas. Entre as 30 maiores bilheterias de Hollywood (onde costumam se encontrar outros projetos de ação, aventura e ficção científica, ao invés das produções autorais), apenas três lançamentos contêm histórias originais: Free Guy: Assumindo o Controle (10º lugar), Encanto (15º) e Tempo (27º). Todos os demais pertencem a franquias, adaptações, refilmagens, reboots. Assim, os méritos deste antiblockbuster de baixo orçamento protagonizado por Nicolas Cage se encontram em sua simples existência, tanto naquilo que consegue fazer quanto no que escolhe evitar: as recompensas emocionais e amorosas, a estrutura clássica. É difícil precisar se as atuações são competentes, se a fotografia carnavalesca se torna adequada e expressiva, se a montagem bagunçada representa uma vantagem — afinal, busca-se o caos, o diferente, o trash, enquanto forma de identidade. Vende-se o agenciamento ruim de ideias e imagens na embalagem de algo novo — e de fato, o filme porta ambos os valores: ele é bastante ruim e bastante novo. Cabe ao espectador decidir de qual lado ele pende sua balança.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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Grade crítica

CríticoNota
Bruno Carmelo
3
Chico Fireman
6
MÉDIA
4.5

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