Crítica
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Sinopse
Fortunata é uma jovem mãe vivendo numa situação extremamente complicada e assombrada por um casamento fracassado. Como forma de mudar de vida, precisa lutar diariamente por seu sonho: abrir um salão de cabeleireiro desafiando seu próprio destino, numa tentativa de emancipar-se e adquirir sua independência e o direito à felicidade.
Crítica
Fortunata, título do longa dirigido pelo também ator Sergio Castellitto, pode ser traduzido no Brasil como “afortunada”. Algo que dificilmente a protagonista, interpretada com vigor por Jasmine Trinca (Maravilhoso Boccaccio, 2015) poderia se considerar. Ao contrário da intérprete, que por este desempenho ganhou o David di Donatello (o ‘Oscar’ italiano) e foi premiada no Festival de Cannes, onde o filme foi exibido dentro da mostra Um Certo Olhar – se tivesse sido incluído na competição principal, pode apostar que teria feito um páreo duro ao lado da alemã Diane Kruger, que levou o troféu pelo drama Em Pedaços (2017), de Fatih Akin. Estes dois filmes, aliás, possuem várias semelhanças, sendo a mais notória o fato de, apesar de serem dirigidos por homens, possuírem narrativas absolutamente femininas. Mas se um era um conto de vingança, neste aqui o acerto de contas é mais íntimo e pessoal. O que, inevitavelmente, o torna também mais universal.
Em meio a um processo de separação do marido abusador (Edoardo Pesce, de Dogman, 2018), Fortunata luta não apenas para manter a guarda da filha do casal (Nicole Centanni), mas também – e mais do que tudo – para sobreviver. Sem emprego fixo, sem mãe, nem pai, tendo sido criada pelos avós, mora em um apartamento apertado em um condomínio de dezenas de apartamentos nos subúrbios de Roma. Sua luta diária consiste em ir de casa em casa de possíveis clientes, fazendo cabelos, pinturas, cortes e o que mais for preciso – “aos 16 anos, já tinha um secador nas mãos, e desde então ele nunca mais dali saiu”, chega a afirmar. Só que a filha – que não tem dez anos – passa a reagir mal com as mudanças da família, e a solução é enviá-la a um psiquiatra, por ordens do estado. É quando conhecem o doutor Patrizio (Stefano Accorsi), homem que dará um novo rumo para as vidas das duas.
A água é um elemento de suma importância em Fortunata. Estamos no verão, tempo de muito calor, em que todos estão suando, a cada instante do dia. A água que escorre pelos corpos também está presente nos traumas que esses personagens carregam, seja no passado da protagonista – “como poderia ser culpada por ele ter se afogado quando eu tinha apenas oito anos?”, se questiona – ou no futuro de sua filha, que ao receber como tarefa em suas sessões a execução de desenhos, invariavelmente acaba fazendo figuras de peixes. A terapia, ao ameaçar algum tipo de efeito, propõe o seguinte jogo: “imagine que você está no fundo do oceano, quem estaria ali com você?”. E quando a ebulição se aproxima, somente a chuva pode se manifestar a ponto de dar um basta no caos premente, preparando o terreno para um necessário recomeço.
Não se pode esquecer, também, do drama dos vizinhos Chicano (Alessandro Borghi, de Não Seja Mau, 2015), um rapaz bipolar viciado em apostas na loteria, e sua mãe (a diva alemã Hanna Schygulla), que já foi uma grande atriz de teatro, mas agora sofre de Alzheimer, a ponto de nem mais reconhecer o filho. Sempre a postos para oferecer o apoio que Fortunata precisa, é com o garoto que ela divide o sonho de um dia ter seu próprio salão de beleza – que só poderá estar completo quando possuir uma parede d’água, sinal máximo desta mudança. Mas ao mirarem tão alto, serão acordados com um copo d’água na cara, que irá balançá-los de modo irremediável, levando-os do alto da caixa d’água de cima do prédio onde moram até o fundo do rio que cruza a cidade e tudo leva, sem perguntas inquisidoras, mas também não oferecendo respostas vazias.
Se há um porém, é justamente a mão do diretor por trás das câmeras – essa é uma história por demais feminina para ser narrada por um homem. Ainda que o roteiro tenha sido escrito por Margaret Mazzantini (esposa do diretor e sua parceira em diversos projetos), há escolhas em cena passíveis de questionamentos motivados pelo lugar da fala: teriam sido executadas da mesma forma, tendo um olhar feminino assumindo tais escolhas? Em uma das primeiras cenas, por exemplo, há um estupro caseiro – o ex-marido, sempre violento, abusa da mulher, que, resignada, não oferece resistência – que nem mesmo chega a ser mencionado posteriormente. Ou uma cena de sexo posterior, que explora mais o corpo dela do que dele. São posturas que até há algum tempo não causariam nem mesmo desconforto, mas que hoje não encontram mais espaço, e merecem ser discutidas e refletidas. Castellitto é um bom realizador, mas Fortunata não é um filme dele – ou, ao menos, não deveria ser. Afinal, o interesse pelo que aqui acompanhamos reside muito mais no texto de Mazzantini e na força demonstrada em cena por Trinca. A estas duas, merecido é o mergulho rumo ao horizonte, que lava e renova, sem olhar para trás.
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