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Sinopse

Marcello, um humilde funcionário  da petshop "Dogman", localizada na periferia de Roma, se envolveu em um dos piores crimes já registrados na história da Itália. Dominado por um sentimento de vingança incontrolável, ele decidiu torturar, durante horas, um ex-boxeador que atormentava todos os moradores do bairro em que vivia.

Crítica

Quem é Marcello? Conhecido por todos na vizinhança, é aquele tipo de cara que ninguém mundo desconfia, mas pelo qual ninguém parece, de fato, interessado. Está sempre nas rodas de conversa, dá “bom dia” e “boa noite” a quem encontra e nunca causou problemas. É pai de uma menina linda – a ex-esposa lhe dá tão pouca atenção que mal chegamos a presenciar os dois juntos em cena – com quem vive fazendo planos de grandes viagens que, invariavelmente, acabam se reduzindo a mergulhos submarinos na costa, próximo de onde moram. Mas tem alguém que, sim, o percebe: Simone, o marginal da região. E se o protagonista é apenas uma presença, um detalhe no cenário para os demais, o arruaceiro o vê como uma pessoa de fato. Mais do que isso: ele é Dogman, o dono da lavagem de cachorros, endereço seguro para qualquer problema. Tudo, aliás, que Marcello gostaria de evitar. Porém, mais do que não se incomodar, ele precisa ser notado. Ainda que o preço para isso seja alto demais.

Em uma composição minuciosa de Marcello Fonte, que por este trabalho foi escolhido melhor ator no Festival de Cannes e pela premiação do Sindicato de Jornalistas de Cinema da Itália, Marcello é um tipo difícil de se torcer a favor, mas também com o qual poucos irão antipatizar – ele não apenas usa um sorriso constante no rosto, como passa seu dia lidando com animais, cuidando de cães pequenos e grandes com muito carinho e cuidado. Por isso, assim que o diretor Matteo Garrone começa a identificá-lo como uma vítima pacata de uma situação pela qual ele até parece ansiar – ou, ao menos, pouco faz para evitar – logo assumimos o seu lado, indignados com tamanhas demonstrações de injustiça. Porém, é preciso esse alerta: Marcello não é santo. Ele sabe bem o que está fazendo, e se aceita tudo que lhe é imposto, é porque, de um jeito ou de outro, está recebendo a sua parte.

Simone, em uma atuação igualmente assombrosa de Edoardo Pesce (Fortunata, 2017), não odeia Marcello, mas também nunca assumiria que gosta dele. Apenas precisa do outro. É sua válvula de escape, seu fornecedor de drogas, o motorista de fuga para aquele golpe pensado de última hora. Até fisicamente os dois se distanciam – ou será que se complementam? Um é grande, grosso, com um rosto cheio de cicatrizes e expressão de fúria. Bem diferente do colega, que é pequeno, fala pelos olhos arregalados, sempre querendo agradar, de voz macia e sem conseguir manter qualquer tipo de postura mais forte. É por isso que, quando o bandido propõe assaltar a loja de penhores ao lado do trabalho daquele que pensa ser seu amigo, este pouca resistência consegue demonstrar. Reclama, resmunga, mas sabe que o melhor é abrir caminho, se afastar e permitir que o brutamontes faça o que quiser.

Essa fraqueza, no entanto, será a força de Marcello. Culpado pelo crime do outro, perde literalmente tudo – a casa, os amigos, a família. Um ano passa na prisão, recusando-se a apontar o verdadeiro autor do roubo. É quando sua bússola moral se torna mais evidente, ao entrar em jogo a única coisa que lhe resta: sua hombridade. Ele não é um delator. Não entrega aquele que nele confiou. Mesmo que esse nem mesmo se lembre mais dele. Dogman é, até pela utilização de um nome americanizado, quase um super-herói. É o homem-cachorro, mas também um vira-lata. É aquele que afaga quando lhe dão alguma chance, ainda que seja o primeiro a ser colocado para correr ao menor sinal de dúvida. “Eu não sou cachorro, não”, diz a letra da canção célebre por representar no Brasil a dor de cotovelo. Marcello, por sua vez, é cachorro, sim. O melhor lado do bicho. Ainda que, em última análise, não deixe de ser exatamente isso: um animal.

Indo de um céu pouco atraente – ou ao menos um cenário com o qual estava habituado e no qual encontrava algum tipo de conforto – a um inferno onde terá que se deparar com todos os seus pecados, Marcello encontra em Simone o alívio e a danação. Uma vez que o pouco de orgulho que ainda lhe restava é ferido, fará de tudo para reavê-lo – nem que, para isso, acabe ultrapassando todo e qualquer limite. Dogman é justamente isso: cruz e espada, ferro afiado que corta sem fazer dor, mas causa estrago irremediável, só percebido quando tarde demais. Qualquer um cometeria os mesmos atos, ainda que poucos fossem os que se permitissem chegar até aquele ponto – e, se lá chegassem, o arrependimento seria tamanho que somente fugindo dessa realidade para dentro de si mesmo seria possível seguir adiante. Mas, sem mais nada, para onde prosseguir? O caminho é para o fim, aquele que não se adia, não se escapa e com o qual não se barganha. Afinal, cão que ladra, não morde. E o que que come quieto, é o que deixa a marca mais profunda.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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