Crítica


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Sinopse

Antes de se juntar ao exército norte-americano em campanha no Iraque, um jovem de uma família rica se casa com sua namorada. A verdade é que ele não está preparado para a realidade aterradora que o espera em território hostil.

Crítica

Quem, supostamente, teria a “inocência perdida” no decorrer de Cherry, como aponta o subtítulo brasileiro? O consenso seria apontar para a trajetória do protagonista, vivido por Tom Holland. Afinal, ganha esse apelido após ter cometido sua primeira morte durante a Guerra do Iraque, quando os colegas comemoram o feito afirmando que teria “perdido o cabaço” (a expressão original seria “pop the cherry”, ou seja, “perder a virgindade”). Acontece que, no decorrer de quase duas horas e meia de projeção – uma duração excessiva e desnecessária – o rapaz irá perder mais do que apenas a inocência, ainda que seguirá sendo tão ingênuo e despreparado quanto no momento em que se apresentou. É quase como se fosse um resumo do acaso ao seu redor, e que suas vontades e iniciativas estivessem todas, de uma forma ou de outra, fadadas ao fracasso. Se o personagem não fosse tão artificial e insuficiente, talvez pudesse ser passível de compaixão e empatia. No entanto, o que lhe resta é um descaso quase contagioso, graças a falta de interesse dele pelo que lhe acontece e a replicação desse mesmo sentimento por parte da audiência.

Dividido em uma infinidade de capítulos – que incluem até prólogo e epílogo – Cherry: Inocência Perdida é baseado no livro homônimo de Nico Walker, escrito a partir das experiências pessoais dele após ter prestado serviço militar em campo, acrescido de uma boa dose de ficção. É de se imaginar que essa esteja concentrada no que se passa tanto antes como depois do episódio que, como já é clichê na narrativa ficcional norte-americana no último século, foi responsável pelos traumas de um adulto que não consegue encontrar seu lugar no mundo, lutando eternamente para permanecer o jovem inconsequente que era antes de ter se alistado. Fazendo uso de uma estratégia gasta pelo constante emprego, o enredo parte de um ponto climático – um assalto a banco – para voltar no tempo e explicar não apenas os acontecimentos que levaram o rapaz até esta situação, como também fornecer os elementos necessários para uma possível compreensão a respeito do que irá lhe suceder adiante. Uma lógica que, ao mesmo tempo, está longe de ser inovadora e, como se mostra aqui, também usada gratuitamente, sem contribuir com o envolvimento de quem a assiste.

Ao longo de sua jornada, o espectador é convidado a acompanhar as transformações do jovem de estudante medíocre a um apaixonado carente, de soldado raso a viciado irresponsável, até o ponto de partida, quando se apresentou como um ladrão atrapalhado. E se tais descrições parecem ser severas ou injustas, basta um pouco mais de atenção para perceber que as mesmas são até benevolentes. No começo, frequenta uma universidade comunitária (os irmãos Anthony e Joe Russo, os diretores, devem ter lembrado dos anos que conduziam o seriado cômico Community, 2009-2012, e ainda que a proposta seja assumir um outro tom, o humor se manifesta de forma quase involuntária). É quando conhece Emily (Ciara Bravo, de O Mínimo Para Viver, 2017), e por ela se apaixona. Sem conseguir dosar seu interesse pela menina, logo estará de declarando de forma tão intensa que não será surpresa quando ela decide se afastar, na busca por espaço para respirar. É nesse momento, ao se ver novamente sozinho, que ele toma a pior das decisões: entrar para o exército.

Bom, se a passagem pelo front é repleta de clichês e tempos mortos – os cineastas buscam uma combinação de Nascido Para Matar (1987) com Soldado Anônimo (2005), sem a intensidade de um e nem o olhar crítico de outro – logo o protagonista estará de volta, ainda sem entender o que lhe acontece. É condecorado sem ver merecimento, é recebido com aplausos por mais que se considere pior do que antes, é deixado à própria sorte, ainda que se veja mais perdido do que quando partiu. A garota, agora, é sua esposa, e por mais que se assemelhem a duas crianças, o contexto tenta impô-los como pessoas capazes de decisões maduras – o que, obviamente, não acontece. Assim, as drogas surgem como remédio imediato, e para sustentar o vício, o roubo a bancos parece uma solução rápida e, a despeito dos indícios contrários, aparentemente segura. Desarmado e portando apenas uma nota suja na qual sua ameaça aparece escrita, passa a realizar uma série de assaltos, dos quais ninguém parece se importar. Polícia, seguranças, gerentes ou responsáveis: no caminho por aqui mal traçado, estas são figuras que inexistem. E acredite quem quiser.

Tom Holland, que após um início auspicioso no filme-catástrofe O Impossível (2012) se jogou de braços abertos para viver o Homem-Aranha no Universo Cinematográfico Marvel (comandado, em grande parte, pelos próprios irmãos Russo que aqui lhe empurram do abismo sem rede de segurança), tem, aos poucos, tentado se envolver com projetos mais densos, como o épico intimista Z: A Cidade Perdida (2016) ou o violento O Diabo de Cada Dia (2020). Cherry: Inocência Perdida se apresenta como consequência natural desse processo, mas a visão estilística dos realizadores, que não disfarçam estarem mais preocupados com a forma do que com o conteúdo – seja pelas imagens saturadas, a trilha sonora descolada, os cortes rápidos – é tamanha que termina por soterrar mesmo os mais discretos dos seus esforços. Seja por uma caracterização equivocada – no final dos eventos, quando deveria estar com mais de 30 anos, continua com cara de 15 – ou um roteiro incapaz de mergulhar nos dramas internos do personagem, o conjunto se mostra tão tedioso e desastrado quanto as ações de um tipo desprovido de carisma, mas ainda assim não digno de pena.

 

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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