Crítica
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Sinopse
A pequena Knockemstiff é repleta de tipos estranhos, tais como um pastor profano, pessoas perversas e um xerife corrupto. Nela, o jovem Arvin Russell enfrenta forças suspeitas que ameaçam a sua família.
Crítica
A bíblia cristã está repleta de passagens controversas, muitas marcadas por uma violência atroz. Não é difícil se deparar com versículos sobre vinganças, expiações, filhos carregando pecados paternos, sacrifícios para comprovar a fé num deus que pede muito antes de dar algo. O Diabo de Cada Dia é marcado por uma quantidade considerável de circunstâncias que parecem decalcadas desse livro tido como sagrado, aplicadas num período que vai do fim da Segunda Guerra Mundial até a metade dos anos 1960. Assim, a ligação com o crer, os dogmas e as religiões não está presente apenas na iconografia, na forma como pastores e guardiões da lei se revelam monstros na pele de cordeiros, mas também alimentando essa força que puxa tudo e todos para o centro de um redemoinho de danação. Aliás, a brutalidade “justificada” pela vontade de poderes superiores – sejam eles os divinos e/ou os oficiais – é compreendida como o grande mal do mundo. Nem bem as vítimas podem assim ser lidas integralmente, pois nesse torvelinho a selvageria também parece salvaguardar.
Há muitos personagens nessa polifonia conduzida pela voz do narrador que confere ao filme um tom de fábula, mais especificamente de parábola. Arvin (Michael Banks Repeta/Tom Holland) é um herdeiro direto do que corrompeu seu pai, primeiro, por meio da devoção exacerbada – utilizada para sustentar os crimes hediondos, caso eles sejam tidos como obra da inefável vontade divina –, e, segundo, pelos anos passados no front da Segunda Guerra Mundial. William (Bill Skarsgård), esse genitor perturbado pela imagem do colega soldado crucificado, se reconcilia com a convicção religiosa ao criar uma igreja particular, improvisada nos fundos do lar em que cultiva sua família tradicional. Ele ensina ao menino a prevalência da força, comprovando essa sua tese ao demonstrar agressividade, como quando lhe sinaliza o poder do revide. A bíblia e o Estado os levam a pensar que o reino dos céus, bem como o dos cidadãos proeminentes, está reservado àqueles que não se deixam ser humilhados e respondem à altura munidos da lei de talião, ou seja: olho por olho, dente por dente.
O Diabo de Cada Dia costura com habilidade as pequenas tramas protagonizadas por vários agentes. Seria fácil perder-se no deslocamento entre as demandas de cada um, mas o filme consegue a proeza de realizar as transições/articulações de modo orgânico, com isso estabelecendo uma contiguidade essencial. É com brutalidade emocional que William convida seu filho a orar pelo restabelecimento da saúde da esposa/mãe. A crença, aditivada de desespero e da sensação de impotência, deturpa esse homem que até ali fez o que pôde para lidar com seus fantasmas. Se não fosse o cão, quem sabe ele não teria feito como Abraão diante do pedido de Deus e sacrificado o próprio filho em prol de um milagre. Aliás, esse “chamado divino” também aparece no pregador que acaba assassinando a esposa por acreditar que pode operar milagres. O cineasta Antonio Campos – filho do jornalista brasileiro Lucas Mendes – pontua que a fé é poderosíssima, tanto que passível de ampliar a corrupção dos homens submetidos à toda sorte de provações sociais, das banais até às menos cotidianas.
Diante desses “pedidos de Deus”, uma jovem se deixa levar pelos sermões baratos de um pastor sintomaticamente caricatural (interpretado com brios por Robert Pattinson). Na medida em que pessoas são incorporadas à trama, em que duas cidadezinhas interioranas são compreendidas como paragens umbilicalmente irmanadas por esses traços de comunidade adoentada não propriamente pela crença, mas por aquilo que dela se faz, fica mais evidente que estamos diante de um cenário cáustico onde os culpados e os inocentes vão sendo despercebidos/misturados num jogo de fusão engenhoso. Arvin reproduz na adolescência o fundamento aprendido com o pai no dia em que o viu retaliando. A ele o perdão soa como absolutamente ingênuo, abraçado por aqueles fadados a sucumbir num entorno semelhante a uma selva dantesca. O desfecho reservado à irmã adotiva aponta à confirmação da lógica desalentada. Os poucos partícipes verdadeiramente bons do filme ficam à margem, inclusive não tendo nenhum poder de decisão e autonomia por ali.
Pode-se também entender a violência em O Diabo de Cada Dia como indício da lei do eterno retorno, segundo a qual toda a existência e energia recorrentes continuarão a ocorrer dentro de um padrão cíclico. Ao serem ferozes para responder a um âmbito essencialmente feroz, os personagens acabam nunca quebrando (pelo contrário) esse pacto de hostilidade que percorre o enredo como que o eletrificando. No filme há um tom entre o irônico e o melancólico, algo visto, por exemplo, na constatação de quem o assassino do casal de serial killers poderia ser perfeitamente filho deles – isto posto por conta de uma coincidência que alimenta a noção de fio invisível tecido pelo destino. Da mesma forma, Deus conversou de fato com o devoto, pregando-lhe uma peça ao garantir poderes espetaculares de ressurreição? São detalhes indeterminados (diante dos quais não cabem respostas) que fomentam a linguagem simbólica utilizada por Antonio Campos para construir essa parábola em que a narrativa bíblica desemboca nos Estados Unidos repletos de charlatães que falam em nome do Todo Poderoso e dos arrastados pela senda colérica retroalimentada, uma geradora de distorções como essa gente.
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Muito obrigado pela leitura, João Carlos!
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