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Crítica
Uma das principais figuras da literatura do século 20, Gregor Samsa simplesmente acordou metamorfoseado em barata num dia qualquer. O personagem de A Metamorfose, do escritor Franz Kafka, então deixou de ser humano inexplicável e repentinamente. Em Caranguejo Rei, o protagonista Eduardo (Tavinho Teixeira) não é animalizado de uma outra para outra. A mudança acontece no ritmo da ganância de sua empresa que passa por cima do bom senso para embrutecer a paisagem. E essa irresponsabilidade dos endinheirados é sugerida na reunião com os publicitários. Fala-se do incidente que precisa ser rasurado na memória da opinião pública, algo que se comunica subliminarmente com os crimes ambientais enormes da realidade, tais como os de Mariana e Brumadinho, mas também com alguns que infelizmente são cotidianos durante as campanhas de exploração imobiliária. Em pouco menos de 25 minutos, Enock Carvalho e Matheus Farias fazem uma alegoria sobre o progresso desenfreado vendido como inevitável e bem-vindo símbolo de futuro que minimiza os efeitos colaterais. Para isso, acenam à ficção científica cinematográfica dos anos 1940/50. O primeiro indício dessa referência é o som assustador que vem diretamente da área verde e ressoa ameaçadoramente quadro adentro.
O segundo indicador dessa filiação de Caranguejo Rei é a metáfora caracterizada por mutações e/ou anomalias. O sci-fi das décadas citadas frequentemente utilizava pessoas, insetos e outros animais agigantados, explorava o surgimento de monstros adormecidos e/ou se valia da fúria dos rejeitos de ações irresponsáveis para dar corpo ao pavor da guerra atômica – assunto recorrente na vigência da Guerra Fria. Então, eram comuns personagens e comunidades inteiras afetados pelo despejo de lixo radioativo em determinado manancial e o vazamento de uma usina nuclear gerando aberrações que logo se voltavam contra os ambiciosos. Caranguejo Rei toma um caminho parecido, atrelando o surgimento de caranguejos na sede da empresa onde trabalha o protagonista, bem como nas obras em andamento, a uma resposta incomum da natureza. Ou seja, o medo atômico deixa de ser a preocupação principal, cedendo esse espaço para duas questões fundamentais que se interligam: a ecologia e a especulação imobiliária. A destruição de reservas, áreas nativas, biomas e tudo que sucumbe à fome dos expansionistas é um mal alastrado na nossa atualidade.
Enock Carvalho e Matheus Farias não se rendem ao didatismo. Por exemplo, evitam uma famigerada aparição conveniente em momentos-chave explicando o que acontece. Os realizadores também utilizam habilmente a falta de lógica a favor da intensificação da atmosfera de angústia. Eduardo passa seus dias respondendo perguntas de funcionários e sócios, aplicando medicamentos para mitigar os efeitos das feridas que começam a surgir no seu corpo e sendo confrontado por uma excepcionalidade à qual não há respostas. As pústulas em sua pele vão ficando cada vez mais pegajosas, maiores, menos passíveis de serem escondidas com curativos, até que uma pata de caranguejo substitua completamente a sua mão esquerda. Por um lado, ele força a modificação agressiva do horizonte para nele caberem mais espigões que alteram a paisagem e a uniformizam. Por outro, é levado a acostumar-se com sua impotência diante do imponderável. No entanto, o curta não é uma investigação de personagem, sendo mais o testemunho de uma vingança crua da natureza que absorve/pune algozes. Os realizadores mantêm perigos à espreita, valendo-se de truques para ampliar tensão.
Caranguejo Rei é um filme repleto de sugestões bem feitas. O som estridente e gutural proveniente da mata insinua a existência de um monstro; o desenho de som (elemento essencial) dá a entender que existe uma exorbitância de caranguejos no terreno da nova construção, mas a câmera permanece fixa nas expressões incrédulas do capataz e de Eduardo. Enock Carvalho e Matheus Farias intercalam a transfiguração do protagonista – que remete à metamorfose do personagem principal de A Mosca (1986), de David Cronenberg – com a delineação do caráter quase subterrâneo da espeita. Boa parte do terror que transborda do filme vem do som a cargo de Lucas Caminha e Nicolau Domingues. Os ruídos, as oscilações de intensidade, a sugestão de volume, tudo isso imprime gravidade a uma reunião de caranguejos, por exemplo. Como em boa parte das ficções científicas do período antes citado, este curta apresenta uma crescente situação tétrica como resultado da atuação predatória de empreiteiras, imobiliárias e afins, uma das tragédias anunciadas do século 21. À natureza cabe metamorfosear Eduardo em caranguejo. Se trata de um revide elevado a potências absurdas.
Filme visto online no VI Cine Jardim, em agosto de 2021.
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