Crítica


6

Leitores


3 votos 6

Onde Assistir

Sinopse

O fantasma do ciúme coloca em risco as paixões avassaladoras e os vínculos afetivos que parecem inquebrantáveis. Bentinho cria intrigas mentais alimentadas pela desconfiança de que tenha sido traído por sua amada Capitu.

Crítica

Para se confrontar a uma obra consagrada como Dom Casmurro, de Machado de Assis, o diretor Júlio Bressane opta por aquele que talvez seja o melhor caminho nestes casos: a irreverência ou, para utilizar um termo moralista, a infidelidade. A linearidade do material literário se perde na série de fragmentos, evocando de maneira discreta a personalidade dos personagens principais, Capitu (Mariana Ximenes) e Bentinho (Vladimir Brichta). O cineasta abandona a homenagem solene, a necessidade de preservar o palavreado machadiano e as reviravoltas criadas pelo escritor. Neste caso, a adaptação se converte em motor de estímulo estético: o diretor se interessa ao ritmo da fala, ao tango de avanços e recuos entre os amantes, ao prazer da arte em si. Ao contrário de tantos realizadores que resumem um livro à sua “história”, o veterano compreende que a ordem de acontecimentos constitui mero detalhe dentro de uma construção literária que assumiu múltiplos significados ao longo do tempo. Por isso, foge à armadilha de reproduzir a sociedade brasileira do final do século XIX: Capitu e o Capítulo (2021) pertence sem dúvida ao século XXI.

Bressane prefere dispersar o tempo e o espaço - por definição, os dois elementos que nos aproximariam melhor de uma relação referencial com Machado de Assis. Impossível saber em que época se desenvolve esta “trama”, entre aspas: o herói trágico possui vestimentas antiquadas, mas as mulheres ao seu redor vestem roupas modernas. Seria ele um homem de convenções, preso ao passado, enquanto elas representam o futuro, ilustrando um casal que, simbolicamente, não vive na mesma época? O casarão se alterna com interações sob fundos texturizados e decorados que poderiam pertencer a um pátio, uma galeria de arte, a outro país. Eles dançam sem música, desenham sem terminar o traço, dispõem quadros na parede sem observá-los, conversam em frente a espelhos jamais admirados. As figuras permanecem atrás de véus semitransparentes, e somem quando convém à montagem. Retira-se do espectador a impressão de um processo em andamento e também as relações de causa e consequência. O autor trabalha na assumida subversão de expectativas: a frustração das relações tradicionais de espectatorialidade constitui sua premissa.

Já o objetivo reside na utopia de um prazer estético “puro”, incluindo as belezas de enquadramento, luz e direção de arte, dissociadas da produção imediata de significado. Ao invés de atuarem, no sentido clássico de comporem personagens, os atores posam, param nos terços exatos do enquadramento, movimentam-se a esmo quando solicitado, encaram longos monólogos de estrutura literária. Bressane abraça o artifício com orgulho. Pelo caráter estático das imagens compostas com molduras de espelhos e vasos de plantas, obtém a plasticidade e o vigor limitados de uma natureza morta. São lindas as combinações de estampas dos vestidos de Mariana Ximenes e Djin Sganzerla com os desenhos nas paredes, ou as sombras obtidas pelos focos direcionais de luz. Ora, essa escolha não serve de modo exclusivo à adaptação de Machado de Assis. O diretor jamais se coloca em posição inferior à obra clássica, preferindo criar a partir dela, expandido seu universo. Apaixonado pelos corpos e pelas representações cerebrais da sexualidade (um paradoxo que sempre adorou enfrentar), encontra no texto alheio um material perfeito para elaborar um longa-metragem inequivocamente pessoal. 

Jean-Luc Godard já confessou ter adquirido os direitos do livro O Desprezo para provar a possibilidade de fazer um filme bom a partir de uma obra ruim. Este não é o caso de Dom Casmurro, porém o brasileiro se esforça em comprovar a capacidade de diluir motivações e psicologias num mar de imagens tão impressionantes quanto herméticas. Sem dúvida, o cineasta sabe que suas escolhas alienam parte considerável do público, ainda que trabalhe com uma referência conhecida e com atores populares. Ao invés de frear o caráter disruptivo de suas construções, prefere aprofundá-las - partindo do texto, ressalta a predileção pelo audiovisual. As palavras continuam tendo peso importante - vide a sensualidade vaporosa do convite ao sexo, por Djin Sganzerla, e o elogio à literatura nacional por Enrique Diaz. Capitu e o Capítulo é um filme que ama os livros, os quadros e a iconografia clássica, mas jamais abandona o potencial de elaborações estritamente cinematográficas, procurando algo que nenhuma outra linguagem seria capaz de alcançar. Neste sentido, ele homenageia a escrita, mas briga com ela; rende-se ao refinamento das criações de Machado de Assis, mas as nega ao mesmo tempo. O vocabulário exigente, os planos longos, a supressão voluntária de conflitos produzem um teor lânguido, avesso a qualquer recompensa emocional ao espectador. Em contrapartida, as associações entre épocas e estilos, entre os planos fixos no casarão e o digital amador e turístico em capelas europeias correspondem à liberdade de junção (ou seria de separação?) pós-moderna.

O espectador terminará a experiência sem qualquer imersão na psicologia dos personagens, nem receberá uma inversão clara de gêneros por colocar Capitu em primeiro lugar em relação a Bentinho. A possível traição se torna secundária: para o cineasta, se houve infidelidade, ela partiu dos dois lados, e constituiu um dos inúmeros fatores responsáveis pela crise do casal. As cenas finais, revelando um despojado making of das filmagens, atenuam o aspecto pomposo da iniciativa. Bressane realiza um exercício de estética, um filme sobre a força do gesto e das ideias, mais do que a oferta de reflexões profundas. Em sua coesão autoral, corre o risco de cativar fãs já conquistados e afastar aqueles que jamais aderiram a uma forma tão árida de narrativa. Traz imagens impactantes, sem dúvida, mas a qual preço? Esta estética radical, porém ensimesmada, desperta importantes questionamentos acerca do potencial do cinema e de suas responsabilidades: o filme bonito é aquele que encontra a melhor forma para seu conteúdo, ou aquele que cativa apesar do conteúdo, por si próprio? Existe beleza intrínseca à obra, dissociada do tema, do contexto de criação, da sociedade e da política em que se insere? Capitu e o Capítulo não fornece ferramentas novas para o debate, porém o reacende, como convém fazer esporadicamente.

Filme visto online no 10º Olhar de Cinema: Festival Internacional de Curitiba, em outubro de 2021.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)

Grade crítica

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *