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Sinopse

Jeff é um jornalista norte-americano que fica obcecado pelo desaparecimento de um pianista brasileiro. Enquanto celebra as figuras da Bossa Nova, ele vai se embrenhando numa teia que envolve as ditaduras latino-americanas.

Crítica

Escolhido para abrir a 25ª edição do Festival do Rio, Atiraram no Pianista é uma animação ficcional com fortíssima influência documental. Dirigido por Fernando Trueba e Javier Mariscal (a mesma dupla responsável por Chico & Rita, 2011), o longa-metragem é contado a partir da perspectiva de um investigador obcecado por um mistério (figura clássica do cinema). Jeff (voz de Jeff Goldblum) é um jornalista nova-iorquino embrenhado na pesquisa sobre a Bossa Nova e, por conseguinte, em aspectos notáveis da cultura brasileira. Ao estudar sobre essa verdadeira revolução cujo marco inicial foi o samba, ele se depara com uma história intrigante. Francisco Tenório Júnior, então um dos maiores expoentes do samba jazz brasileiro e admirado como um dos principais pianistas do país sul-americano, simplesmente despareceu numa noite, no meio de uma turnê pela capital argentina com o amigo e colaborador Vinícius de Moraes. O filme começa com esse sujeito lançando um livro no qual conta a sua busca pregressa, ou seja, o narrador é alguém resumindo a empreitada com fins literários à plateia de leitores. No entanto, os diretores não parecem muito interessados pelo processo criativo, pelas estratégias do autor norte-americano para transformar em escrita as experiências que alimentaram sua curiosidade. O fato de ele ser um escritor apenas justifica a averiguação minuciosa e a contação da jornada.

Atiraram no Pianista possui um atrativo a mais para quem mora no Rio de Janeiro ou, ao menos, possui alguma familiaridade com certos cenários paradigmáticos da Cidade Maravilhosa. Priorizando ambientes e personagens multicoloridos, Fernando Trueba e Javier Mariscal retratam a antiga capital imperial/federal com minúcia impressionante, reproduzindo lugares emblemáticos como o Beco das Garrafas (celeiro de talentos da Bossa Nova) e a Toca do Vinícius (reduto do movimento no bairro de Ipanema), sem contar, evidentemente, os vislumbres das praias paradisíacas, do Cristo Redentor e do Pão de Açúcar. O protagonista dessa história é acompanhado pelo carioca João (voz de Tony Ramos). O local é uma espécie de facilitador do estrangeiro, aquele que marca encontros praticamente impossíveis com figuras intocáveis da música popular brasileira e ajuda esse olhar forasteiro a se inteirar de turbulências históricas, principalmente a Ditadura Civil-militar que desgovernou o Brasil por mais de 20 anos. Os realizadores trabalham a partir de uma perspectiva ficcional (o escritor pesquisando), mas escancaram episódios e personalidades reais numa aproximação com a linguagem documental. Os próprios depoimentos são ora inventados, ora reproduções de conversas com figuras testemunhais como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Ferreira Gullar, entre outros.

Então, Fernando Trueba e Javier Mariscal se deparam com a realidade e a retrabalham a partir da animação e da construção da justificativa à investigação. Vale voltar a ressaltar o nível de detalhamento dos cenários, as marcas de bebidas e de outros bens de consumo que conferem organicidade aos interiores de apartamentos e botecos, em suma, a vivacidade de ambientes, alguns que resgatam a essência dos espaços reais. Por exemplo, o Beco das Garrafas não é encarado a partir da sua obsolescência atual (ela nublaria as histórias que por ali aconteceram), pois os realizadores fazem questão de enfatizar uma mítica anterior. Atiraram no Pianista é uma obra reverencial à cultura brasileira e essa homenagem às vezes excede limites, passando a ser uma muleta. Há momentos em que a trama parece andar em círculos apenas para os cineastas continuarem se deleitando com as histórias de grandes nomes da música e escreverem a sua carta de amor à Bossa Nova e à genialidade de seus expoentes. Ao não enfatizar tanto o processo criativo, eles perdem de vista coisas menos rígidas, como a distorção ocasionada pela obsessão e o deslumbramento do olhar estrangeiro ignorante das heranças nefastas das ditaduras latino-americanas dos anos 1960/70. Mesmo diante desses problemas, o filme também presta um bonito tributo a Francisco Tenório Júnior, colocando gigantes para festejar a sua arte magistral.

Apesar dos traços simples e da animação que quebra expectativas quanto à fluidez dos movimentos, Atiraram no Pianista é exuberante visualmente. Tanto a técnica da animação quanto os seus traços potencializam o retrato de uma latinidade pujante, distante de certos estereótipos visuais. Até mesmo porque a representação das personalidades verdadeiras segue a lógica retratista. As versões animadas são iguais às reais. Outro ponto positivo é que durante a investigação dos eventos que marcaram o desaparecimento do músico brasileiro em solo argentino os diretores aproveitam para demarcar o território com uma visão absolutamente crítica aos métodos das ditaduras latino-americana. Nesse sentido, o destaque vai para a cena da guia grávida que explica ao jornalista estadunidense como se davam as rotinas num centro de encarceramento e tortura da Argentina – inclusive como futuras mães eram tratadas pelo regime. Já um dos problemas do filme é a incapacidade de tornar certos instantes mais objetivos, algo possível de ser enxergado em determinadas cenas extensas e repetitivas demais. Além disso, quando a trama parecia praticamente resolvida enquanto documento de uma época, Fernando Trueba e Javier Mariscal esticam a investigação um pouco mais com os depoimentos de familiares que pouco acrescentam, na verdade. No entanto, a animação musical que dialoga abertamente com o documentário se destaca pela ode a um Brasil progressista e à Bossa Nova.
Filme visto durante a 25º Festival do Rio (2023)

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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