Crítica


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Sinopse

Anton é católito e Jacob judeu. Essa diferença, contudo, não os impede de cultivar uma fraterna amizade num povoado ucraniano convulsionado pela sanha agressiva dos bolcheviques nos anos 1910.

Crítica

O título em português deste filme georgiano aponta diretamente ao suposto protagonismo de um vínculo afetivo. Anton Laços de Amizade, contudo, está mais preocupado com uma pequena leva de eventos acontecidos no ocaso dos anos 1910 numa pequena vila ucraniana. Os camponeses, entre eles judeus vindos de várias partes e os alemães migrantes ali estabelecidos, são acossados pela sanha destrutiva dos bolcheviques, daqueles que destituíram a monarquia russa ao extirpar os czaristas do poder. Ao largo de intimidações constantes, do medo entendido como um elemento cotidiano na vida dos pacatos agricultores, Anton (Nikita Shlanchak) e Jacob (Mykyta Dziad) cultivam um elo que os torna fraternos. O primeiro é filho de uma família católica que saiu da Alemanha àquele território em busca de melhores oportunidades. O segundo é o herdeiro do comerciante judeu das cercanias. O cineasta Zaza Urushadze não confere tanta importância a esse laço, fazendo dele gradativamente um dado apendicular nesse convulsionado cenário. Nem o mundo lúdico idealizado pelos meninos às margens dos obstáculos diários é apresentado como passível de ganhar relevo.

Apenas esporadicamente Anton e Jacob surgem em cena para garantir um contraponto infantil ao estrépito que sobrevém a assassinatos e outros vultos crescentes sobre a localidade. Anton Laços de Amizade não é dado a sutilezas, vide a forma como desenha e organiza os personagens dentro de situações bastante demarcadas. Zaza Urushadze é incapaz de entremear expressivamente as maquinações que envolvem comunistas inapelavelmente tipificados como vilões e lavradores compondo famílias modelares constantemente vitimizadas pela tirania dos novos ocupantes do poder – no que viria a ser a União Soviética. Subaproveita na mesma medida as crianças vivendo relativamente alheias a isso. Um indício da mão pesada do realizador é a presença de Dora (Tetiana Grachik), a militar frequentemente chamada pelos moradores de “vadia vermelha”, mulher sem quaisquer escrúpulos que condensa em si estereótipos sobre comunistas. Aparentemente de sangue frio, ela determina a tragédia de proles inteiras, sendo uma carrasca. Até a sua disponibilidade sexual é utilizada como um suposto (e canhestro) indício de uma dissonância vil dos valores tradicionais e cristãos.

O grande problema de Anton Laços de Amizade é a representação. Não há nuances entre os lados antagônicos dessa História em transformação. Num polo residem os malvados, que decidem acabar com lares e gente em prol da ideologia em plena ascensão. No outro estão os pobres coitados que sentem a necessidade de pegar em armas para defender-se dos abusos. E tudo isso com uma roupagem que não sustenta tensões propriamente dicotômicas entre mundos pretensamente inconciliáveis. Há vários elementos mal enjambrados no filme, tais como a instrumentalização da fé, a possível convivência entre as crenças em divindades distintas, a vingança como mobilizadora de respostas violentas e a tragédia abatida sobre os inocentes. Zaza Urushadze sequer deixa uma porta aberta à compreensão de que os amigos Anton e Jacob em breve, na Segunda Guerra Mundial, deverão servir a lados diametralmente opostos, o que poderia sinalizar as circunstâncias da meninice como o começo dos infortúnios e das crises igualmente ocasionadas pelo obscurantismo reinante na Europa.

Demonstrando inépcia para trabalhar atos potencialmente controversos, como a traição judia colocando em risco os vizinhos, Anton Laços de Amizade ainda consegue trazer Leon Trótski (Oleg Simonenko) para a equação que, paradoxalmente, enfraquece ao ganhar camadas. Incorrendo num retrato sobremaneira caricatural desse personagem factual, Zaza Urushadze o coloca como alguém existente entre a utopia delirante e o pragmatismo cruel. Levando em consideração que praticamente toda a trama se dá em flashback, com um dos protagonistas desse enredo rememorando, do alto de sua velhice, à distância, os fatos marcantes dos verdes anos, a culpa pode ser entendida como outra engrenagem simplesmente mencionada, mas nunca levada devidamente a sério. Se trata, no fim das contas, de um filme que não logra êxito na delineação da amizade como pilar e tampouco dá conta de oferecer um painel histórico consistente. Nesse conjunto também sobrepesa negativamente a falta de carisma dos atores mirins que interpretam as incautas testemunhas.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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