Neste ano, a pandemia de coronavírus provocou uma crise aguda em todas as atividades econômicas e culturais, e o cinema, por sua vez, buscou alternativas às salas fechadas. No que diz respeito aos festivais de cinema, grandes eventos internacionais como Sundance (em janeiro) e Berlim (em fevereiro) mantiveram suas edições presenciais, antes de os índices de contaminação impedirem aglomerações em espaços fechados. Ironicamente, a ideia de um festival online pareceria absurda dentro do nicho cinéfilo alguns meses atrás. Afinal, não se trata apenas de disponibilizar os filmes, mas de exibi-los em boa qualidade, gerando um debate entre público e criadores, suscitando conversas frutíferas e estabelecendo pontes entre artistas e agentes do mercado, como distribuidores e exibidores.

Festivais também são fundamentais para o turismo, para a economia local, para gerar uma marca em torno do evento, comprovar a importância simbólica do cinema no calendário de atividades culturais. O Festival de Cannes, um dos maiores do mundo, não se resume a um aglomerado de filmes, constituindo uma experiência revestida intencionalmente pelo imaginário do luxo, do glamour, da proximidade entre os maiores astros e os mais respeitados profissionais do cinema. “Um festival online nunca vai substituir o evento presencial”, contestaram diversas pessoas, com razão. Não há substituição possível. Previsto inicialmente para ocorrer em maio, Cannes torceu o nariz à possibilidade de confinar seus grandes filmes a uma pequena plataforma virtual. Preferiu exibir as obras separadamente, em doses homeopáticas, dentro das sessões presenciais de outros festivais que virão mais tarde, quando a situação – espera-se – estiver controlada.

 

 

Aos poucos, no entanto, as exigências se afrouxaram. Melhor ter alguma forma de festival do que festival nenhum, certo? Nomes importantes do mercado avaliaram que o buraco de um ano poderia ser muito prejudicial aos patrocinadores, que talvez se dissociassem dos projetos e retirassem as verbas para o ano seguinte. O que dizer dos filmes que ainda precisam ser mostrados, debatidos, comercializados? Assim, criou-se a decisão quase unânime em torno da organização de festivais em plataformas virtuais. Em todo os casos, ressaltou-se a perda significativa deste formato – os textos de curadores e diretores artísticos estão particularmente melancólicos em 2020 -, porém argumentando pela manutenção de uma edição, custe o que custar. O luxo cedeu lugar à cruzada pessoal pela preservação da cultura. Quem diria que eventos tão prestigiosos, e tão duradouros, se revelariam tão frágeis?

O caso brasileiro é ainda mais grave, por diversos motivos. Primeiro, a Covid-19 está particularmente descontrolada no país, devido ao descaso do governo federal. Segundo, o quadro de desmonte da Cultura existia muito antes do primeiro sinal de uma doença. O Festival de Brasília havia cogitado o término no último ano, enquanto festivais como o tradicional Anima Mundi e o Festival do Rio dependeram de financiamento coletivo para suas edições recentes. O festival de documentários É Tudo Verdade perdeu patrocinadores, e também precisou se adaptar para preservar a qualidade da seleção. Nós, brasileiros, sabíamos bem que ter algum festival seria melhor do que festival nenhum, especialmente neste momento, quando se ataca o cinema nacional, se lança rumores falsos sobre os modos de financiamento das artes e sobre a vida de ostentação dos artistas. Manter um festival se torna mais do que uma afirmação protetiva: trata-se de um gesto de sobrevivência, um posicionamento político fundamental.

 

 

Assim, tantos os grandes festivais, organizados há décadas (Brasília, Gramado, Cine Ceará, Mostra Internacional de São Paulo, É Tudo Verdade, Curta Kinoforum, Mix Brasil) quanto os mais recentes (Ecrã, FIM, Festa do Cinema Italiano, Olhar de Cinema, Curta Brasília, In-Edit) optaram pelo formato online. Isso significa que o segundo semestre, quando normalmente se concentra um número maior de festivais, permite excepcionalmente experiências simultâneas para todo o Brasil: os filmes que antes ficavam restritos a uma cidade, agora podem ser vistos em qualquer lugar. Moradores de cidades sem acesso a festivais, ou cujo circuito exibidor se limitava a um punhado de blockbusters por ano, agora têm acesso a propostas independentes, em sua maioria gratuitas. Trata-se de uma oportunidade raríssima de democratização do acesso ao cinema, e não qualquer cinema: um cinema plural, composto de curtas-metragens e longas-metragens, de ficção, animação e documentário, das mais diversas formas e propostas.

Por um lado, esta configuração pode gerar fenômenos raros e bem-vindos. Eduardo Valente, cineasta, crítico e curador, notou em suas publicações uma aclamação em torno do belíssimo Sertânia (2020), de Geraldo Sarno, exibido pela primeira vez presencialmente, na Mostra de Tiradentes (em janeiro), e depois em versão online, em agosto, durante o Festival Ecrã. A bolha cinéfila – aquela particularmente atenta aos filmes de festivais – tem se dedicado a belas discussões sobre o drama, recomendando-o, compartilhando informações a respeito. Mesmo sem números exatos para comprovar esta hipótese, é possível sugerir que este resgate do cangaço no cinema contemporâneo tenha conquistado um aclamação muito maior na versão digital, quando as pessoas assistiram à obra em seus computadores ou telefones, do que na bela tenda de Tiradentes, com o diretor e equipe presentes. Em que outras circunstâncias um projeto tão ousado geraria tamanha discussão, pelo Brasil inteiro?

 

Sertânia

 

Por outro lado, a proliferação de eventos tem facilitado a confusão entre datas e eventos, que agora competem uns com os outros pela atenção em nível nacional. Os críticos de cinema conhecem este fenômeno há algum tempo: quando a crítica passou a se multiplicar com velocidade em blogues e sites, a tecnologia permitiu tanto a democratização do acesso à profissão quanto uma dispersão do acesso aos textos. De repente, as análises de grandes críticos se misturavam às publicações apressadas de blogueiros iniciantes, às vezes mais facilmente encontradas nos motores de busca do que o trabalho dos veteranos. O espectador pode encontrar maiores obstáculos para determinar filtros de seleção e encontrar uma obra específica. Para os filmes, a tarefa é ao mesmo tempo facilitada (visto que as obras estão ao alcance de todos) e dificultada (visto que a concorrência multiplicou exponencialmente).

Até o ano passado, um festival como Gramado conseguiu atenção suficiente para si próprio, gerando a necessária repercussão para os títulos selecionados. Este ano, durante a 48ª edição de Gramado, haverá cinco outros festivais em datas inteira ou parcialmente coincidentes. Casos como o de Sertânia podem acontecer, ao passo que filmes excepcionais como Cavalo (2019) correm o risco de não receberem a devida atenção. Este é o sintoma de uma produção brasileira rica e múltipla, que não encontrava o devido espaço no circuito comercial, e que necessita da atenção, do reconhecimento e eventualmente dos prêmios de festivais para se sustentar no circuito e garantir as próximas obras dos criadores. Se o trabalho de curadoria permitia selecionar obras específicas, dentro de um recorte de temática, linguagem ou discurso, agora a curadoria tende a se diluir, visto que muitos filmes estão presentes ao mesmo tempo em eventos diferentes.

 

Todos os Mortos

 

A questão da distinção é essencial à percepção da qualidade artística. Sociólogos das artes apontam para a constatação de que um festival seleto, onde apenas um punhado de filmes disputa o cobiçado troféu, agrega maior valor do que o festival que seleciona praticamente qualquer obra inscrita. Trata-se do princípio da raridade: o objeto mais oneroso se torna mais precioso, a universidade que seleciona melhor seus alunos adquire um status mais elevado, e o festival capaz de pinçar obras preciosas entre a maré de títulos disponíveis torna-se ainda mais interessante aos olhos dos profissionais do cinema. Vale lembrar que o festival não serve apenas para valorizar os filmes selecionados, sendo igualmente valorizado por eles. Todo festival sonha em ter o seu Parasita (2019), Uma Mulher Fantástica (2017) ou Bacurau (2019) para retroalimentar a qualidade da seleção e o poderio da curadoria em encontrar a obra preciosa antes dos demais.

No caso da sobreposição de festivais simultâneos, a noção de raridade se atenua. Ainda que filmes aguardados como Um Animal Amarelo (2020), Todos os Mortos (2020) e Antena da Raça (2020) estejam selecionados em poucos festivais online, eles ainda estão disponíveis ao mesmo tempo, dispersando as atenções. Recentemente, uma discussão com um colega trouxe a dúvida: Cinema Contemporâneo (2019) está disponível no Curta Kinoforum ou no Ecrã? Os conceitos de organização, seleção e de discurso a partir da seleção tornam-se menos potentes pela multiplicação da oferta. Outra questão importante diz respeito ao futuro destes festivais: agora, em formato mais econômico e prático, sem exigir a manutenção de salas, a contratação de dezenas (ou centenas) de funcionários, sem os custos de passagens de avião, hospedagem e alimentação aos convidados, os festivais voltarão ao formato tradicional quando a pandemia estiver controlada, ou mesmo erradicada?

 

 

2021 será um ano de respostas importantes para o nosso audiovisual. Como o Brasil reagirá à desestruturação da Ancine, à paralisação dos editais e da liberação de verbas, às tentativas de censura e controle do acervo audiovisual? Ficaremos acostumados à ideia de que, para um festival, basta disponibilizar o filme, sem nos preocupar com a qualidade da sessão, com os debates, os encontros, com a experiência inerente ao ritual cinematográfico? Assim como festivais não se resumem a sessões, o cinema não se resume às suas obras. Ele implica numa reflexão e numa experiência, constituindo uma arte coletiva em sua produção e consumo. No atual momento, estamos fazendo o melhor possível, dentro de plataformas online que ainda travam, sofrem com problemas de organização interna ou visualização das obras. Diante da urgência de manter os festivais, os sistemas virtuais cumprem bem o papel de plano B. Mas o que será dos encontros presenciais, quando o contato humano for de novo possível dentro de uma mesma sala, preferencialmente cheia? É importante que a valorização dos festivais online não sirva de justificativa a organizadores, patrocinadores e políticos para a eliminação do festival presencial.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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