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Um dos títulos brasileiros mais aguardados da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, Verlust (2020) chega aos cinemas brasileiros nesta quinta-feira, 05, pela Elo Company. E um dos destaques do elenco é justamente a atriz Andréa Beltrão. No filme dirigido por Esmir Filho ela interpreta Frederica, empresária de uma artista de renome diante da necessidade de transformação. Afeita a controlar não apenassua vida, mas também a dos que a circundam, ela enfrenta dilemas enquanto prepara sua já tradicional festa de réveillon. Conversamos via telefone com Andréa para saber, entre outras coisas, o que a atraiu a um projeto de contornos estético-narrativos tão singulares, além de saber como anda sua percepção a respeito de premiações e dos desmontes aos quais a cultura no Brasil é submetida. Sem mais delongas, confira o nosso Papo de Cinema exclusivo com a estrela Andréa Beltrão.

 

O que te atraiu na possibilidade de interpretar a Frederica, essa mulher na iminência de uma crise transformadora, de um passo distante do comodismo de uma vida confortável?
Quando o Esmir entrou em contato comigo, já admirava muito seus filmes anteriores, então tinha um desejo de trabalhar com ele. Antes mesmo do primeiro encontro, já estava super dentro. Agora, diante da Frederica, fiquei animada para viver uma mulher que se transforma, que vive esse jogo de poder e controle, do excesso a respeito da própria vida e dos que estão ao seu redor. Ela tem um mecanismo de viver que já era. Achei linda a dramaturgia que eles construíram no roteiro, a fragmentação, essa mulher que vai se desconstruindo até entregar os pontos de uma maneira bonita. Tem isso de viver por meio do afeto, sabendo que há momentos em que a gente pode agir e outros em que não. Isso de querer controlar tudo é ancestral. Uma coisa que a maturidade traz é isso da liberdade, a sua e a dos outros, de abrir mão do controle. Algumas pessoas têm mais sorte, exibindo essa clareza desde a juventude.

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Houve espaço para moldar a Frederica ao longo do processo ou existia um rigor com relação à personagem apresentada no roteiro?
Existia um rigor com relação ao que o Esmir queria contar, às situações, à atmosfera do filme, aos embates que o filme traz, aos conflitos e tal. Nisso existia rigor, pois precisávamos alcançar esse lugar. Mas, o Esmir sempre foi muito aberto, sempre ouviu os atores. É algo da natureza dele. Esmir sabe o que quer, mas ouve, pois acredita que podemos ajudar de alguma maneira. A construção da personagem foi feita em conjunto, com várias contribuições. Por exemplo, quando fiz a primeira prova de roupa, entendi melhor quem era a Frederica. Da minha parte, era preciso estar aberta ao que vinha do Alfredo Castro, da Marina Lima, da Fernanda Pavanelli, do Ismael Caneppele. Há ali também uma construção impressionante do Inti Briones, diretor de fotografia maravilhoso. A câmera dele atravessa o sentimento da cena, revela o que tem de mais misterioso nela, possui opinião e personalidade.

 

Especialmente nas Lives que estamos fazendo no Papo de Cinema, vimos discutido com atores e atrizes sobre o papel do preparador de elenco enquanto orientador, quase como se preenchesse uma lacuna deixada por diretores que não se aproximam tanto dos atores…
Discordo completamente dessa visão. Sempre tive um contato estreito com os diretores com quem trabalhei. Sempre fui dirigida pelos diretores. Respeito a figura dos preparadores, mas não sou acostumada a ter preparadores, nunca trabalhei assim. Aprendi, talvez por ser mais antiga, a ler, a descobrir no roteiro o que mora ali, a entender o que o diretor espera do texto e dos atores. O preparador é interessante quando você tem não atores…ou quando há algo específico, tipo interpretar um cirurgião. Tenho prazer nessa interação com diretores. Delegar isso a outras pessoas seria tirar parte do meu prazer. Preciso também da preparação solitária, do meu vazio, aprender sozinha, estudar como uma louca madrugada a dentro, devorar atores que admiro, prestar atenção. Acho uma pena quando o preparador se interpõe entre o diretor e o ator, ficando numa situação de mediador, que talvez nem ele curta.

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Como te soou a direção do Esmir Filho, no sentido da necessidade de criar uma coesão partindo de um elenco com tantos intérpretes de experiências e escolas distintas?
Não vi nele propriamente um método, aliás, acho que não existe um método perfeito para a direção. Talvez seja interessante quando diretores e atores conseguem uma abertura para o que acontece naqueles momentos, porque se tratam de cenas diferentes, dias e instantes distintos. O Esmir é sempre aberto, bastante focado na liberdade. Ele dirigia a todos nós de maneira delicada, carinhosa, bem próxima, nos estimulando, encaminhado a um lugar provocador, da boa provocação e da boa dificuldade. Sem angustia. Diariamente conseguíamos fazer coisa que nos deixavam inseguros ou fora do lugar confortável, e isso é muito bom.

 

O Verlust pertence àquela lavra de filmes que leem a fauna artística, incluindo aí o pessoal dos bastidores, sempre demarcando um vazio incompatível com a badalação da superfície. Te preocupava eventualmente cair numa vala comum quanto a essa abordagem?
Não vejo o mundo artístico dessa maneira. Não sei de onde veio essa ideia de badalação. Quem trabalha nesse ofício, contando histórias, a partir da nossa cultura, fazendo dramaturgia, na literatura, sabe que tudo isso exige uma dose imensa de vazio. Não consigo perceber direito isso da badalação. Para mim, o vazio, a solidão, a insegurança, a busca, todos esses são elementos importantíssimos. Quando você vai viver emoções que não são suas, se emprestar e doar, tocar e expressar algumas coisas, trazer opinião, levantar um assunto, é preciso estar pronto para ser devorado. No que diz respeito ao artista, a badalação é um estereótipo vulgar e pequeno. A artística é uma atividade bastante difícil, como todas, deixando isso muito claro. Um médico também tem angústias, um professor, uma pessoa que vende roupas, tudo o que toca nas relações humanas. Não vejo o âmbito artístico com essa capa simplista.

 

Aliás, por Hebe você acaba de ser indicada ao Emmy Internacional. Desde o anúncio você vem falando muito sobre essa ser um reconhecimento coletivo. Chega um ponto da carreira, especialmente numa estabelecida, em que os prêmios ganham realmente outra importância?
Não sei. Para mim, essa indicação é realmente minha. Não procuro esse tipo de honraria, a gente faz, trabalha. E só. O fazer é o mais importante. Quando esse tipo de homenagem e de nomeação vem, é uma alegria, uma celebração. Mas, claro, não me vejo sozinha nesse lugar porque fui convidada, dirigida, tive pessoas que me ajudaram, professoras de prosódia, canto e postura. Não posso dizer para você que elas são minhas preparadoras, mas foram minhas professoras, mesmo, aquelas que me ensinaram coisas que o diretor não saberia me ensinar. Cada um com sua atividade. Isso do prêmio ser coletivo ou não, é porque para mim ele se estende a essas pessoas que me ajudaram a dar vida à personagem. Não posso, de jeito nenhum, achar que fiz tudo sozinha. Tomara que eu ganhe, embora eu ache difícil a Glenda Jackson não ganhar, sinceramente. Mas, voltando, o prêmio é coletivo nesse sentido, mas não por conta da passagem do tempo, não tem essa explicação sociológica. Sem falsa modéstia, tem meu esforço ali.

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Não apenas como artista, mas também como empresária do ramo artístico, como você está percebendo as lógicas governamentais aplicadas recentemente às áreas da Cultura?
Na verdade, a empresária e eu somos a mesma pessoa. Tenho uma vida particular, cuido da casa, dos filhos, do marido, tenho dois teatros, trabalho na televisão, isso tudo é bem misturado. Porém, quanto ao teatro, estamos enfrentando dificuldades, mas não apenas por causa da pandemia, também por conta dos desrespeitos e desmontes apavorantes. É um retrocesso inimaginável. Não podemos esperar nada das pessoas que atualmente estão no poder. Mas não acredito que isso perdure. Não é possível. Estamos vivendo momentos escabrosos, agora como mais isso de estupro culposo – nota da redação: referência ao caso envolvendo a vítima de estupro Mariana Ferrer em Santa Catarina –, é impressionante. Uma falta de compostura em relação a tudo. Estamos acompanhando a eleição norte-americana, porque se mexe lá, mexe aqui, para ver se a gente respira um pouco. É a idade das trevas. Deus deve estar muito chateado de ver isso acontecer. Eu gostaria de perguntara a ele: “o senhor está contente com tudo isso?”.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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