Vera Holtz é um furacão. Por mais que seja um nome consagrado no teatro e na televisão, ainda lhe faltava, no entanto, um papel no cinema à altura desse impacto que costuma causar. Acostumada a participações esporádicas na tela grande (sua estreia foi numa ponta em Fêmeas em Fuga, 1984), esteve em títulos de destaque (Carlota Joaquina: Princesa do Brazil, 1995, e Anjos do Sol, 2006, por exemplo), mas geralmente em tipos marcantes, ainda que secundários. O mais próximo de um protagonismo aconteceu com a comédia Bendito Fruto (2004), que lhe rendeu uma indicação como Melhor Atriz na premiação da Associação dos Correspondentes de Imprensa Estrangeira no Brasil (Prêmio ACIE). Mas isso era antes. Pois nesse ano ela surgiu como estrela absoluta de Tia Virgínia (2023), que teve sua estreia no Festival de Cinema de Gramado – de onde saiu com nada menos do que sete kikitos, entre eles o de Melhor Atriz! Premiada na mesma categoria também pelo Los Angeles Brazilian Film Festival, tem tudo para fazer bonito na próxima temporada, numa composição tão complexa, quanto universal. E foi sobre esse trabalho que Vera conversou com o editor do Papo de Cinema. Confira!
Vera, um prazer falar contigo. Sei que você morou por anos no Rio Grande do Sul, e o Tia Virgínia teve uma recepção calorosa no Festival de Gramado. Como foi esse momento?
Olha, é familiar, mas também não é. Para você ter uma ideia, logo que cheguei no aeroporto comecei a notas as diferenças, está tudo mudado. Os aeroportos, hoje em dia, são todos iguais, não há mais aquele charme específico de cada lugar. Você nunca sabe onde está descendo. Quer dizer, até vislumbrar a imagem do gaúcho, do gaudério, foi quando entendi: “bom, agora estou no Sul”. E, com isso, veio um mundo de lembranças. Fui casada por muito tempo com o Caco Coelho, e por isso frequentava o Rio Grande do Sul. Tinha estado no Festival de Gramado anos atrás, também, mas era outra coisa. Dessa vez, quando cheguei na cidade, fiquei encantada! Coisa mais bonitinha, mais linda de se ver! Entendi porque o carioca, que geralmente não gosta muito de sair do Rio de Janeiro, faz fila para ir a Gramado. E sempre digo: “já conheço Gramado” (risos). O engraçado é que todo mundo no Rio conhece Gramado! No imaginário de todo brasileiro, é uma cidade que está muito viva.
Mas dessa vez você chegou ao festival já na condição de favorita ao kikito.
Ter um festival de cinema no meio de tudo aquilo é uma alegria sem fim. A sessão do filme, quando foi exibido para o público pela primeira vez, foi meio atravessada. É que tem a ver com a minha atual dedicação ao teatro, tenho feito muito isso. E parecia que estava no palco, ao assistir ao filme. Só que não, estava ali, sentadinha, assistindo ao lado de todo mundo. Teve muitos aplausos em cena aberta, duas ou três vezes. E só pensava: “meu Deus, o que é a comunicação de uma obra? Um filme familiar, apaziguador”. Afinal, a partir do momento em que você discute a questão em família, ela apazigua a pessoa. O público que veio conversar comigo, ao final da projeção, entendeu isso. Me diziam: “Vera, não sabia que você passava todos os natais lá em casa”. E eu, com cara de espanto, respondi: “ué, mas como assim?”, pra ter como retorno “é porque na minha família é igual ao que vocês fizeram nessa história”.
Você conhecia o trabalho do Fabio Meira, diretor de Tia Virgínia? Havia visto o longa anterior dele, o As Duas Irenes (2017)?
Conhecia, claro. Aliás, foi quando tudo começou. Porque fui na pré-estreia do As Duas Irenes, em São Paulo. Nem lembro por qual razão, alguém deve ter me chamado, não sei. Tanto que cheguei sozinha, e quando desci as escadas, o Fábio me viu. E eu vi o Fábio. Não lembro se foi exatamente naquele dia que veio esse convite, mas o certo é que se estabeleceu uma conexão entre nós. Acontece que o Fábio, vamos ser sinceros, é meio bruxo (risos). É um vidente, está em outro lugar. E essa convivência com ele só me fez admirá-lo mais.
Quem é a tia Virgínia? Como você encarou essa personagem e como foi entrar nessa pele?
O que mais gosto, na verdade, é trabalhar com o diretor. Quando assisti ao As Duas Irenes, lembro de ter pensado: “nossa, que coisa, como ele conseguiu contar essa história?”. Outra coisa que foi muito importante, pra mim, foi saber que tinha a Janaína Diniz Guerra como produtora, isso me deixou “encantadinha”. Quando li o roteiro, vi que era excelente, tinha ali uma personagem com passado e presente, ela está na ação, e está armando o futuro dela. O que perdeu, reinventa. E vai atrás. Depois, quando o resto do elenco vai chegando, você vai ficando cada vez mais motivado em contar aquela história, com aquela equipe.
Apesar do Tia Virgínia ter uma estrutura que pode ser chamada de “teatral”, o Fábio Meira revela uma imensa preocupação em dar espaço aos atores.
Com certeza. E ele é assim com a equipe toda, não apenas com o elenco. O Fábio é exigente. Pede para fazermos até alcançar o tom que espera. Vai te pontuando, te fechando, até estar pronto. É cirúrgico nesse sentido. “Essa é a precisão da cena que quero, que está equilibrada com as outras, e é assim a história que estou contando”. Tudo é muito alinhado, o filme não sai da mão dele em momento algum. Está sempre nos conduzindo, ao mesmo tempo em que nos dá abertura para o improviso, para sugestões, para testarmos coisas diferentes. Tem muita troca.
Tia Virgínia apresenta uma família “rodrigueana”. É essa a cara do Brasil?
É totalmente inspirado em Nelson Rodrigues. É uma família brasileira, sem tirar, nem por. As famílias não precisam serem salvas ou não, elas apenas são. Não tem como discutir família, afinal, é uma complexidade absurda. Protege o humano, mas também acalma. Tudo isso dando sequência a uma ancestralidade que começou muito antes de todos nós.
Vamos falar desse trio maravilhoso: você, Arlete Salles e Louise Cardoso. Como foi esse encontro entre vocês no set?
Foi se formando aos poucos. O Fábio me pediu dicas, de quem poderiam ser as duas outras irmãs, e de imediato pensei na Arlete, que além de ser uma belíssima colega, eu a adoro. Acho ela encantadora. E foi ótimo. Nós três ríamos muito. Abraçadas e dando gargalhadas, na mesma medida em que chorávamos. Eu dizia: “Fábio, que coisa mais linda, olha só essa sequência”. Vendo o filme, até a música me causou espanto, porque nos primeiros cortes, muitas vezes, nem trilha sonora tem. Mas deu tudo certo, pois o resultado tem harmonia, entrega tudo com muita delicadeza. Estávamos todos embolados numa energia contagiante. Foi um tempo de delicadeza que vivemos juntos.
Toda família tem a sua tia Virgínia? E como se lida com ela?
Acho que sim. Antigamente era sempre a mais velha que cuidava da família. Depois, foi pra mais nova. Agora, meio que ficou na mão daquela que não casou. A que não tem filhos. Mas a tia Virgínia se dá bem com todo mundo. Tem o universo dela, que está à parte. O Tia Virgínia é uma filme no qual você não vê a história da tia Virgínia. Afinal, já está acontecendo há muito tempo, e não é revelada. Você sabe que a Virgínia tem uma vida ativa, tem amigos, ela sai. “Não sou só isso, vocês é que me impedem de viver a minha vida, não me aceitam do jeito que sou”. Quando você descobre que na geladeira dela tem só um copo d’água, já sabe que tipo de vida ela levava. Era mais outdoor do que indoor. E o que fazem? Tiram a Virgínia da vida “fora”, e a colocam nessa vida “dentro”. Só que ela quer a liberdade, fazer o que lhe der na telha.
Pra gente encerrar, esse kikito de Melhor Atriz por Tia Virgínia foi mais do que merecido, não?
Não consigo nem pensar nisso. Eu vivo o aqui e agora, fazer o filme foi maravilhoso, esse acolhimento em Gramado foi incrível, mas hoje o Tia Virgínia está nos cinemas e o que quero é que as pessoas descubram o que fizemos. Uma premiação é um caminho, você passa por ela, é algo que, de uma forma ou de outra, está tecendo a história do Tia Virgínia.
Você é uma artista muito criativa. Tia Virgínia vem para coroar essa trajetória? Creio que seja o maior destaque que você já teve no cinema.
Com certeza, é o meu maior papel no cinema. É um momento muito especial. É o filme no qual estive mais próximo do que é, de fato, uma produção cinematográfica. Uma experiência da qual não vou me esquecer nunca.
Entrevista feita em Gramado em agosto de 2023
Últimos artigos deRobledo Milani (Ver Tudo)
- Dahomey - 13 de dezembro de 2024
- Um Homem Diferente - 12 de dezembro de 2024
- Marcello Mio - 12 de dezembro de 2024
Deixe um comentário