Gustavo Spolidoro é um dos mais importantes cineastas gaúchos entre os que despontaram no começo dos anos 2000. Responsável pelo primeiro longa-metragem brasileiro inteiramente feito em plano-sequência – Ainda Orangotangos (2007) – ele chega agora com seu mais recente filme, Os Dragões. Depois de exibir a novidade nos festivais de Tiradentes e do Rio, Spolidoro projeta sua mais nova criação na 18º edição do Fantaspoa, acontecimento dedicado ao cinema fantástico. Baseado num conto de Murilo Rubião, Os Dragões fala de um grupo de amigos que vive numa pequena comunidade do interior do Rio Grande do Sul. Em meio às questões corriqueiras da adolescência, os cinco começam a sentir mudanças físicas drásticas, como o surgimento de chifres, escamas e a capacidade de expelir fogo. Aos poucos, esses jovens cheios de questões e incertezas percebem que estão ganhando características dos mitológicos dragões. O que fazer: ficar na cidade e enfrentar a comunidade ou alçar voos maiores longe dessa localidade que tende a criminalizar as diferenças? Conversamos remotamente com Gustavo Spolidoro para saber um pouco mais sobre Os Dragões e a sua expectativa para a participação no Fantaspoa 2022. Confira.
Como se deu o seu interesse pela obra do Murilo Rubião?
Virei fã do Murilo Rubião em 1998, quando assisti ao curta-metragem O Bloqueio, do Cláudio de Oliveira. É uma animação muito doida, um dos curtas mais impactantes que já vi. Mas, sem saber, eu já conhecia a obra do Rubião, pois ela também é a base do curta O Ex-mágico da Taberna Minhota (1996), do Rafael Conde. Quando me deparei com o livro do Rubião, comecei a pensar o que dava para adaptar, pois muitos dos escritos dele só seriam possíveis como animação. Um dia surgiu a ideia de adaptar alguns contos e filmar em Cotiporã, onde já havia rodado Morro do Céu (2009). Dei o livro de contos para o Gibran Dipp e começamos a pensar o que poderíamos fazer. Tinha esses Os Dragões, O Pirotécnico Zacarias, o mais famoso conto do Rubião, que cai até em vestibular. E surgiu A Cidade, que forma a trinca que compõe a trama principal do filme. E tem o conto Alfredo, que inspira aquele curta dentro do filme, quando se vai ao passado.
E o quanto você foi fiel ou infiel ao material original ao filmar?
Nunca tive muita preocupação com isso de fidelidade, até porque é impossível. Se trata do meu olhar da história. Não sei o que o Rubião acharia do filme se ele estivesse vivo. A detentora dos direitos da obra do Rubião, sua sobrinha Silvia Rubião, adorou o resultado, especialmente quando soube que era para adolescentes. Ela leu o roteiro e nunca interviu em nada, foi sempre uma pessoa de bom trato, o que é importante quando vamos fazer uma adaptação. O autor tem apego, claro. E o filme nunca vai ser a visão do autor. Tive essa experiência com o Paulo Scott em Ainda Orangotangos. E o Paulo demorou para gostar do filme, mas hoje lida super bem com isso (risos). Claro, era a minha forma de ver aquele universo.
E Os Dragões é a reiteração do seu interesse pela adolescência. De onde vem isso?
Sou bastante focado nesse universo, tanto que estou com um projeto novo ambientado em 1982, época em que eu tinha 10 anos, no auge do movimento punk por aqui e quando surgiam as videolocadoras em Porto Alegre. O bom de filmar histórias que se passam antes de 2000 é que as pessoas não têm celular. Aliás, espero não fazer filmes que se passam depois desse período, porque os celulares são elementos que estragam alguns aspectos da magia do cinema. Me identifico muito com a adolescência. Fui punk na adolescência, com 13 para 14 anos usava moicano (risos). Nessa mesma época, eu todo me achando malandro, chegava em Cotiporã, terra onde morava a minha avó, e encontrava meus amigos que viviam lá e que valorizavam muito mais do que eu o significado de liberdade. Numa cidade grande não há uma opressão aparente. Agora, numa cidade pequena, sob o olhar da igreja que fica no topo do morro, essa galera sabia valorizar bem mais esses pequenos momentos de liberdade. Ali me dei conta de que eles estavam muito à minha frente nessa relação com a adolescência. Isso foi bastante importante para mim. Sempre tive a vontade de reproduzir isso em cinema. A adolescência é um período muito doloroso, em que não somos nem crianças e nem adultos.
E como foi trabalhar com as ferramentas do cinema fantástico?
Uma das grandes referências do filme era Os Garotos Perdidos (1987). Sabe o que é doido? Vou te dizer uma coisa que tu pode não acreditar: não tinha exatamente a intenção de fazer um filme de gênero. Desde o princípio, o que estava posto era o realismo mágico (ou fantástico, como queiram). Mas, o filme estava muito mais para um drama adolescente sobre a passagem para a vida adulta do que para um exemplar fantástico. Quando começamos a entender para onde a história vai, percebemos que ela tinha gêneros. O filme se encaixa em festivais infantojuvenis, mas também nos fantásticos e nos de obras LGBTQIA+. Nunca fiz algo nesse sentido do cinema fantástico, então não sei te responder exatamente sobre isso do fantástico no resultado, pois não estava na minha gênese. Ele veio com o Murilo Rubião. Nos sentimos tão livres para trabalhar a história. Talvez se eu partisse desse desejo de fazer um filme de gênero, poderia tê-lo engessado. Ele não é exatamente um filme fantástico, mas o fantástico habita o filme.
No filme, o padre (a religião) é opressora e a professora de teatro (a arte) é acolhedora. Essa relação estava estabelecida para vocês ou surgiu naturalmente no processo?
No conto original, existe uma pessoa que cuida dos jovens. No filme, essa pessoa é a professora de teatro. Originalmente, o roteiro tinha metalinguagem, pois íamos mostrar a peça sendo montada. Então, o espaço do teatro seria a realidade e quando eles saíssem dali aconteceriam coisas fantásticas. Tiramos isso por vários motivos, mas principalmente porque estava confuso e distanciava dos adolescentes. Mas, mantivemos a fagulha, o que desperta neles a mudança. De certa forma, essa relação veio naturalmente. As pessoas da cidade não estão assustadas porque é absurdo um jovem soltar fogo, mas porque são “arruaceiros que podem queimar a cidade” e esse é o lance do realismo mágico.
Qual a sua expectativa para a recepção do filme no Fantaspoa, um evento de recorte fantástico?
Cara, estou bastante receoso (risos). Vou para um festival temático, de gênero. E, se bobear, meu filme deve ser um dos menos marcados por esses códigos. Então, talvez eu tome umas chapuletadas da galera do debate, vamos ver (risos). Claro, teremos os amigos e familiares para me defender (risos). Sem brincadeira, é bom ter outros olhares. De certa forma, sempre recebi muito bem as críticas aos meus filmes.
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