Um dos grandes atores do cinema brasileiro contemporâneo, Rômulo Braga tem se destacado cada vez mais na tela grande – ainda que siga se mantendo um tanto afastado do grande público sintonizado apenas na telinha. Ou seja, ainda é uma figura a ser descoberta. Premiado no Festival de Brasília por Elon Não Acredita na Morte (2016) e no Festival do Rio por Sangue Azul (2014), costuma ser mais rápido do que os próprios filmes que tem feito – quando um finalmente entra em cartaz, geralmente conta com mais dois ou três já prontos, só no aguardo pela melhor data de lançamento. É o caso de Organismo, drama de estreia do diretor e roteirista Jeorge Pereira, exibido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo em 2017, mas que só agora, dois anos depois, está chegando ao circuito comercial. Enquanto isso, títulos como O Barco – premiado no Cine Ceará 2018 – e Navios de Terra – que participou do Olhar de Cinema de Curitiba 2017 – seguem inéditos. Aproveitando a ocasião, conversamos com exclusividade com Rômulo Braga, que falou um pouco mais sobre Organismo e outros trabalhos. Confira!
Olá, Rômulo. Quem é Diego, o protagonista de Organismo?
O Diego é uma mistura de projeções. Do Rômulo, do Jeorge, da Bianca Joy, minha colega de elenco, e do Michel Benever. Michel é um cara que me ajudou muito, fiz uma espécie de laboratório com ele. Ele é tetraplégico, e foi fundamental para esse processo de entendimento do personagem. A gente foi encabeçando esse cara, trocando informações, tentando entender os possíveis universos dele. E tentando humanizá-lo ao máximo possível, sem medo. Mesmo que isso fosse provocar desgostos. Mas a ideia era essa. Era importante também pois estávamos levantando outras questões, para além do acidente que ele sofre e o deixa naquela condição. Que essa situação fosse quase um caminho ou uma possibilidade de redenção, para a maneira como aquele ser humano se construiu. A gente não queria vê-lo como uma vítima, muito menos como herói. Queríamos mostrar a humanidade dele. Encerrar, ou puni-lo, por um acidente, seria reduzir demais o que ele é. Ao invés disso, encontrar nesse lugar uma renovação, um jeito novo de ser humano, era mais importante.
Organismo é baseado em uma história real. Você chegou a entrar em contato com quem viveu estes fatos? Há uma maior preocupação em casos assim?
Bom, sim e não. No caso, meu ponto de apoio foi a história do próprio Michel, pois o filme é, em parte, inspirado na trajetória dele. Hoje ele mora em Porto de Galinhas, mas nasceu na Suíça. Era um jovem atlético, praticante de esportes radicais, que um dia foi dar um mergulho num rio, saiu correndo, pulou de ponta, e bateu a cabeça numa pedra. Ficou tetraplégico. Então, tê-lo por perto, foi fundamental. No entanto, sobre a preocupação em trabalhar com esse tipo de personagem, ela sempre existe. Mas, ao mesmo tempo, sou criador. Sou uma espécie de prestador de serviços. Fico nesse limbo, no meio termo. Meu potencial criativo é colocado, mas responde a uma direção. Não estou sozinho. Nesse caso específico, a personalidade do Diego foi sendo construída juntos. Tinha indicações no roteiro, da direção, mas entendemos que podíamos chegar em outros caminhos. Ele é bem diferente do Michel, por exemplo.
A narrativa de Organismo é dividida em diversos espaços e tempos. Como foi para ti, enquanto ator, participar desse processo?
Na verdade, o processo chegou até mim fragmentado. Tive apenas um escopo de visão, na época das filmagens, dos estudos. Não sabia, no entanto, como seria tratada a parte da infância, por exemplo. Não tinha ideia como ela iria se revelar na tela, nas filmagens. Inclusive, foram filmados em períodos diferentes. A minha parte foi toda feita antes. Não tive esse contato, já tinha voltado para Belo Horizonte, pois estava em outro projeto.
A sinopse do filme fala da dificuldade de Diego em “aceitar seu novo corpo”. Quão desafiador foi ter que lidar com um personagem como esse?
A dificuldade está em representar uma minoria. Não sei se é isso mesmo, mas quando a gente coloca uma minoria na tela, o que se espera é que essa representação faça jus à realidade… não sei se estou entrando por um caminho muito complicado, mas acredito estar certo. Pois quero que essa minoria seja representada, tenha o bom e velho lugar de fala, que se entendam as circunstâncias daquela situação. No entanto, por outro lado, um desafio como está me proporciona acesso a um mundo ao qual não pertenço. O máximo que tenho é uma visão de fora. É um personagem ímpar, diferente de qualquer outro que já fiz e virei a fazer. Nesse, só posso representar esse lugar, por mais dedicado que tenha sido. Sempre fui muito bem acolhido por essa comunidade, principalmente através do meu contato com o Michel, e do próprio Jeorge. Penso que o máximo que posso dizer agora, passada essa experiência, é que falta acessibilidade no mundo, as pessoas precisam ser mais civis, com direito de ir e vir de fato. E entender as camadas de personalidades que existem dentro de cada círculo. Vai todo mundo no mesmo combo, e não é assim. Existem os tetraplégicos, mas, entre eles, há os gays, os negros, os sensíveis, enfim, há uma infinidade ali, como em qualquer outro grupo. Mas, antes disso, precisamos dar acessibilidade a essas pessoas. A condição física vem sempre primeiro.
As relações de Diego, seja com o cuidador, com a namorada, até mesmo com a mãe, são fundamentais no cotidiano dele. Imagino um ambiente de muita confiança durante as filmagens, não?
Isso sim, foi uma entrega total. Muita troca. Sobretudo, entre o Jeorge e o elenco. A minha relação com a Bianca foi de muita confiança. Muita honestidade, poder falar as coisas, fazer o trabalho ao qual havíamos nos comprometido. Estamos trabalhando, afinal, não é algo de outro mundo. Ou seja, há uma troca de interesses. Mas nada extraordinário. A minha maior interferência, nesse sentido, foi na escolha da criança que faria o meu personagem quando jovem. Achei o menino muito parecido comigo, gostei da escolha. E ele foi incrível. O restante do elenco não me envolvi em nada. Escolha total do diretor. Estivemos sempre juntos, no entanto, desde as leituras, experimentações, em todos os debates. Com experimentações em cena a cada oportunidade. Todo esse processo foi bastante orgânico, com muita proximidade.
Você já havia feito algo tão limitador? Como é trabalhar com o mínimo, alguém incapaz de realizar qualquer tipo de movimento do pescoço para baixo?
Não, foi a primeira vez. Foi um pouco.. cara, nem sei dizer. De fato, a experiência foi surreal. Somos acostumados a trabalhar o corpo em todas as instâncias. É difícil demais ficar sem se mover. Como encontrar essa expressividade? Seu corpo não está sentindo? Não é nada fácil, posso confirmar. Isso só foi possível graças à relação que desenvolvi com o Michel, fiquei convivendo com ele durante um tempo. Ficamos juntos, muito próximos. Ele foi muito generoso. Acompanhava tudo o que ele fazia. Como ia ao banheiro, para tomar banho, para sentar na cama… ele me explicou tudo, me mostrando na hora, para acompanhar cada movimento. Ia repetindo, ao lado dele. Foi um laboratório intenso. Parece absurdo, mas era isso mesmo.
Gostaria de falar sobre o título. Que organismo é esse ao qual o filme se refere?
Na minha visão, é mais um organismo rizomático. É uma visão particular, não sei se é a mesma do diretor, se é a sua ou de qualquer outro que for assistir ao filme, no entanto. O que temos ali é um ser humano encerrado em si mesmo, ou a um passo de se perder. Depois de um acidente, após levar uma vida de um modo extremamente egoísta, ele entende que isso é o pulo do gato, a percepção dele o faz entender que tem alguma coisa que continua funcionando no corpo dele, sem esse egoísmo que sempre o guiou. Ele continua conectado com o mundo. O título é isso, esse organismo maior, que tá dentro de cada um de nós.
Você está com vários filmes prontos, não? O que pode adiantar sobre esses próximos projetos?
O Barco eu também não vi pronto ainda, assim como o próprio Organismo, acredita? Vou assistir agora, na tela grande, como qualquer outro espectador. O Petrus Cariry, diretor d’O Barco, arrasa na fotografia, tenho certeza que o filme deve estar lindo. Mas tenho feito bastante coisa, isso é fato. Tem Os Sonâmbulos, que passou na Mostra de Tiradentes e no Festival de Brasília, e também tá pra entrar em circuito nas próximas semanas. Esse assisti e gostei demais. É um filme muito louco, foi uma experiência incrível. Fiz um curta no início desse ano, chamado Marlim, dirigido pelo Leo Tabosa. Foi muito legal também. E, agora, to num longa chamado Valentina, que vai ser filmado em seguida. Tem ainda um do Sergio Machado, previsto para esse ano, que se chamará Cidades Ilhadas. E vamos adiante, tocando a vida. Não dá pra parar.
(Entrevista feita por telefone na conexão Porto Alegre / São Paulo em abril de 2019)
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