Annabel Jankel não é nenhuma novata. Fundadora de duas premiadas produtoras de cinema, televisão e publicidade – Cucumber Studios, na Inglaterra, e MJZ, nos Estados Unidos – a cineasta começou sua carreira dirigindo videoclipes para alguns dos maiores nomes da música mundial, como Talking Heads, Elvis Costello e George Harrison. Tamanho talento não passaria desapercebido, e Hollywood logo tratou de convocá-la. Porém, por maior que tenha sido o impacto do personagem Max Headroom (que ganhou um telefilme em 1985) ou do noir Morto ao Chegar (1998) – estrelado pelo casal (na época) Dennis Quaid e Meg Ryan – ninguém estava preparado para o tropeço que foi sua adaptação do videogame Super Mario Bros. (1993), produção repleta de expectativa que decepcionou tanto o público quanto a crítica. Tanto é que foram necessárias mais de duas décadas para a realizadora voltar com um novo trabalho para a tela grande. E o resultado é o romance Fale com as Abelhas, estrelado pela vencedora do Oscar Anna Paquin. O filme, lançado em 2018, chega somente agora aos cinemas brasileiros. Aproveitando a ocasião, o Papo de Cinema entrou em contato com a diretora, que atualmente mora em Los Angeles, para um bate-papo inédito e exclusivo sobre esse novo projeto. Confira!
Olá, Annabel. O que a motivou a adaptar para o cinema o romance de Fiona Shaw?
Eu realmente queria fazer um filme que fosse uma história de amor. No entanto, estava preocupada em fazer algo que as pessoas tivessem visto antes. Então, quando fiquei sabendo a respeito do livro de Fiona Shaw, foi realmente inesperado. A primeira impressão que tive era de que se tratava de algo muito sensível, e me apaixonei pelo que li. Fiquei com vontade de explorar aquele universo, principalmente em relação à natureza das abelhas. Haviam muitos elementos nessa história de amor em particular que me atraíram. Não só era sobre um relacionamento gay, como também em uma época em que esse tipo de relação era visto como um tabu ainda maior do que hoje em dia. Era mais do que apenas uma paixão passageira.
Uma curiosidade: a Fiona Shaw, autora do livro Fale com as Abelhas, não é a mesma Fiona Shaw atriz, vista na saga Harry Potter e em tantos outros sucessos, certo?
Ah, não. Elas são homônimas. O mais engraçado é que elas se conhecem, aliás. Ambas são inglesas. Eu cheguei a trabalhar com a atriz Fiona Shaw no Super Mario Bros. (1993), ela é maravilhosa. Está incrível também, aliás, em Killing Eve (2018-2021), uma das minhas séries favoritas no momento.
Bom, você sabe, eu cresci com Super Mario Bros…
(risos) Muita gente me diz isso. Entendo bem pelo que você passou. Na maioria das vezes, no entanto, o que percebo é uma relação de amor e ódio em relação ao filme (risos).
Entre Super Mario Bros (1993) e Fale com as Abelhas se passaram mais de duas décadas. Por que tanto tempo afastada do cinema e o que a levou a voltar agora?
Bom, sempre estive envolvida com o mercado cinematográfico. Adoro contar histórias, e hoje em dia, talvez o lugar mais apropriado para isso seja a televisão. Há um ambiente fantástico nesse formato, que possibilita muitos recursos no sentido de se envolver com a audiência. É como um romance, você consegue mantê-los presos ao que está contando por mais tempo. Entretanto, sempre tive essa certeza de que queria voltar ao cinema, ao formato do longa-metragem. Então, fiz diversas outras coisas, como séries, documentários, até videoclipes.
Você chegou a fazer um outro filme, com o Tim Roth, certo?
Sim, bem lembrado. Se chama Skellig (2009), e era uma grande fantasia. Mas era um filme feito para a televisão, e acho que só nos Estados Unidos chegou a ter um lançamento limitado nos cinemas. Nos demais países, como no Brasil, provavelmente permaneça inédito até hoje, o que é uma pena.
No início da sua carreira, você demonstrava grande interesse pela tecnologia e pelo uso de efeitos especiais. Em Fale com as Abelhas, no entanto, esse recurso é mais sutil. Como você vê o emprego destes elementos hoje em dia?
Olha, não sei se diria que em Fale com as Abelhas o uso de efeitos especiais é tão sutil assim. Você está absolutamente correto ao afirmar que sempre fui interessada no uso da tecnologia no cinema. Tanto é que, nesse filme, todas as abelhas foram geradas por computador. Quer dizer, quase todas. Claro que haviam abelhas de verdade, e essas eram possíveis de serem vistas nos closes dentro da colmeia. Essas cenas foram feitas por uma equipe de segunda unidade, em separado, e eram pessoas especialistas em lidar com os insetos. Era a mesma equipe que trabalhou em A Vida Secreta das Abelhas (2008), para você ter ideia. Entre eles havia até um “encantador de abelhas”, como é chamado, que consegue até dizer às abelhas o que devem fazer e como se comportar.
Então vocês nem chegaram a ter contato direto com as abelhas?
Na maior parte das vezes, não. Pois eles trabalhavam em separado, eu apenas assistia ao resultado final e dava minha avaliação, se era o que estava esperando ou não. Entre nós, na equipe principal, sempre que haviam abelhas por perto – e não apenas na sequência final, mas por todo o filme, com exceção da primeira aparição delas, quando Anna Paquin ensina o garoto a como lidar com as abelhas – todas as demais são inserções digitais. Afinal, era perigoso tê-las de fato conosco no set. Expor os atores às abelhas de verdade poderia dar muito errado, como você pode imaginar. Nesse ponto, concordo, com o uso sutil dos efeitos especiais, pois o desenho a ser desenvolvido precisava acompanhar os movimentos de câmera, e era algo delicado a ser feito. Tanto é que nem foi feito nos Estados Unidos, foi desenvolvido por equipes na Suécia e na Índia. Era muito técnico, e precisávamos dos melhores. Aprender com eles foi uma das partes de todo esse processo que mais me motivou.
Como você chegou aos nomes de Anna Paquin e Holliday Grainger para as protagonistas?
Bom, na verdade, nenhum dos papéis foi escrito especialmente para elas. O que aconteceu é o que geralmente se dá em situações como essa, nos modelos mais tradicionais do negócio, quando o roteiro começa a circular entre os agentes e as sugestões a respeito de quais atrizes seriam as indicadas para cada personagem vão chegando até nós. Mas preciso dizer, não consigo pensar em outras duas atrizes melhores do que elas agora. Ambas foram excelentes, e já as admirava antes, pela diversidade de trabalhos de suas carreiras.
Qual foi a reação delas ao seu convite e como foi trabalhar com as duas no set?
Foi incrível. Não conhecia Holliday Grainger tão bem quando nos encontramos pela primeira vez, mas foi amor à primeira vista. Ela era muito nova, mas desde então comecei a procurar mais a respeito dela, e tudo que ia vendo era fantástico. Nós éramos praticamente vizinhas, na época em que morei em Londres, então marcamos de nos encontrar em um café para nos apresentarmos e conversar sobre o filme. Ela tem uma presença cênica muito forte, uma qualidade de estrela de cinema da qual você não consegue tirar os olhos, sabe? Por tudo isso, e pela história se passar nos anos 1950, parecia se encaixar perfeitamente ao que estava procurando. Há uma qualidade clássica, uma certa vulnerabilidade, que me soou interessante.
Anna Paquin se tornou mundialmente conhecida quando ainda era criança, mas cresceu e se tornou uma atriz de personagens bem diversos, não?
Com certeza! Sou completamente louca por O Piano (1993), acho que é um dos meus filmes favoritos de todos os tempos! Então, é claro que todo mundo sabe quem é Anna Paquin. Ter ganho o Oscar quando ainda era tão jovem poderia tê-la destruído – como aconteceu com outras atrizes que passaram pela mesma situação – mas, no caso dela, a tornou consciente do talento que possui e a motivou a sempre procurar por novos desafios. Por tudo isso, pensei que seria o contraponto perfeito a essa vulnerabilidade e resiliência que a personagem da Holliday Grainger deveria demonstrar. Precisava ter uma determinação que só alguém muito profissional conseguiria emular. Afinal, estamos falando de uma médica, alguém com autoridade, mas ao mesmo tempo, de uma mulher. Era uma combinação complicada para aquela época. Além disso, guardava para si um histórico de um envolvimento lésbico, do qual precisou se afastar – e esse é o motivo de sua mudança. Paquin me pareceu perfeita para carregar não apenas esse passado, mas também em lidar com as responsabilidades que se apresentam no decorrer da trama.
Anna Paquin ganhou o Oscar quando tinha apenas 12 anos. Em Fale com as Abelhas, um dos protagonistas também é uma criança, o jovem Gregor Selkirk. Ela de alguma forma te ajudou a lidar com ele?
Sim, foi fantástica em todas as cenas que precisou dividir com Gregor. Ele não havia feito muitas coisas antes, acho que este foi o primeiro ou segundo longa dele. Mas ela lhe ofereceu muita segurança no trato com todos os demais atores. Além disso, era sempre muito gentil, e o encorajava a tentar coisas novas e a se arriscar. Com certeza contou com a própria experiência enquanto atriz desde pequena e o ajudou de forma decisiva.
Duas mulheres apaixonadas em um romance histórico não chega a ser necessariamente uma novidade no cinema. Podemos citar filmes como Carol (2015) ou Retrato de uma Jovem em Chamas (2019) como outros exemplos bem-sucedidos com tramas similares a de Fale com as Abelhas. Você diria que se trata de uma tendência?
Absolutamente. Acho que, como todos esses filmes, de uma forma ou de outra, tem dado certo, penso que a procura por histórias semelhantes tem aumentado desde então. Por outro lado, precisamos ser sinceros: sempre houve filmes dessa temática. Acontece que antes eram mais direcionados a um nicho específico. Esse cenário começou a mudar, penso, a partir de Azul é a Cor mais Quente (2013), que não apenas fez sucesso nos festivais, mas também captou a atenção de um público mainstream. Desde então, tramas similares tem gerado atenção no público. Por consequência, há mais investidores. Produtores dispostos a financiar esse tipo de filme. E quando as pessoas se mostram abertas a um cinema mais diverso, essa pluralidade se reflete também na quantidade de obras. É por isso que hoje temos também um Me Chame Pelo Seu Nome (2017), por exemplo. Porque os espectadores estão mais flexíveis, e aceitando romances dessa natureza. Outra consequência é a quantidade enorme de festivais de cinema específicos para o público LGBTQIA+. Então, sim, diria que é uma tendência, mas não passageira: é algo que veio para ficar.
Não cheguei a ler o livro de Fiona Shaw, mas em mais de um lugar li que o final original do livro foi alterado para um tom mais dramático. Por quê?
Na verdade, essa mudança foi feita por diversas razões. Se você não leu o livro, é preciso ter cuidado ao falar a respeito, pois não quero lhe dar nenhum spoiler (risos). Mas posso dizer que o final do livro é como que o fechamento de um ciclo, conectando as pontas com o que havia sido exposto no começo da história. E nós também mudamos o início da trama no filme. Então, não fazia sentido manter o mesmo final, entende? No livro, quando encontramos Charlie pela primeira vez, ele é um homem nos seus 30 anos. Era algo que, no entanto, não nos interessava em mostrar no filme. O que queria era me debruçar sobre esse curto período de tempo, como o passar de uma estação. Estava atenta apenas àquele verão, sabe? E como esses eventos mudaram a vida dessas duas mulheres. E no livro, sem revelar muito – até, porque, acredito que seria ótimo que o filme estimulasse as pessoas a irem atrás da obra original, pois são duas visões sobre uma mesma história – o desfecho é mais conclusivo, digamos. O nosso pode ser mais agridoce, mas serve para mostrar como elas eram sozinhas, como a proximidade entre elas as afetou, e como cada uma seguiu seu próprio caminho. Isso me pareceu ser uma boa conversa a se ter a respeito. Queria explorar essa ideia.
Você tinha até um ator escalado para viver Charlie quando adulto.
Pois é, Billy Boyd, que é maravilhoso. Bem, todo mundo o conhece da saga O Senhor dos Anéis, ou seja, dispensa apresentações. No livro, esse personagem, já adulto, tem uma importância para a história. No entanto, quando você faz uma adaptação, é preciso cortar certas coisas, o foco necessariamente é mais limitado. Ainda mais quando você se propõe a contar aquela história em menos de duas horas. Então, chegou um ponto que nos vimos obrigados a eliminar a versão adulta do Charlie. Mas Boyd segue no filme, ele é o nosso narrador, e fez um incrível trabalho.
A trama de Fale com as Abelhas se passa em uma pequena cidade no interior nos anos 1950. Tanto tempo depois, você acha que essa situação mudou para melhor, pior ou continua bastante similar em alguns aspectos?
Acho que em alguns países não mudou nada, infelizmente. Me refiro, é claro, a muitos países da Ásia, ou do Oriente Médio. Mas para nós, no mundo ocidental, as mudanças foram drásticas. E ainda bem! Hoje temos uma aceitação muito maior, a diversidade está ao nosso lado, o tempo todo. E não só no que diz respeito às questões gays, mas de todas as minorias. Como os negros, por exemplo. Veja o movimento #BlackLivesMatter (#VidasNegrasImportam), e a força que alcançou. Cada um destes temas, aos poucos, foi ganhando visibilidade. Todos tiveram seus desafios específicos para serem enfrentados pela sociedade, mas o debate veio, e é importante lidar com isso. Então, posso afirmar, muita coisa mudou, e para melhor. Mas, ainda assim, há muito a ser feito. E acredito que sempre haverá, pois as pessoas a todo momento descobrem uma coisa ou outra com a qual não se sentem confortáveis, e por isso é preciso o diálogo.
Já que estamos falando sobre mudanças, como é para você trabalhar em Hollywood? As coisas estão realmente mudando para as mulheres cineastas?
Essa é uma ótima pergunta. E acho que, a despeito de qualquer opinião, basta olhar para as estatísticas e perceber como estão do nosso lado. Até um ou dois anos atrás, os números não eram tão bons assim. No entanto, quanto maior se dava o ativismo relacionado à essa questão, as coisas, enfim, começavam a mudar. E o que vemos, agora, é o resultado dessas ações. Acho que o trabalho de pessoas como Geena Davis, e a organização que ela lidera, foram fundamentais para isso. Estou otimista em relação a essa questão. Mas, claro, é a sensação que tenho a partir do meu limitado ponto de vista. Em geral, é um círculo estreito, exclusivo e difícil de entrar. Hollywood, definitivamente, não é para todos. É difícil se destacar. Por outro lado, a aceitação é maior nos festivais, na realização dos curtas-metragens. Então, certamente está mais fácil agora do que quando eu comecei, por exemplo.
Qual a sua relação com abelhas? Como foi trabalhar com esses animais em cena?
Elas são absolutamente impossíveis de se lidar. É como ter que domar 5 mil gatos ao mesmo tempo (risos). Simplesmente não tem como. Elas não fazem o que você espera. Só no cinema, mesmo, para lhe ouvirem daquela forma. Se fosse daquele jeito, não precisaríamos de técnicos de efeitos especiais tão habilidosos (risos). Porém, tendo dito isso, posso dizer que a Unidade Bee (Abelha) – que é como os chamávamos – realmente conseguia tratar as abelhas e obrigá-las a agir conforme o esperado. Eles tem seus truques, algumas substâncias que usam, constroem certos caminhos para fazer com que sigam por determinados lugares.
Confesso que fiquei assustado com a cena das abelhas no pescoço de Holliday. Aquilo foi real ou eram inserções digitais?
Ok, já que você perguntou, eu confesso: eram efeitos especiais! (risos) Mas veja bem, até esse tipo de abelha é difícil de ter em cena. No roteiro, estava escrito que cinco abelhas se colocariam no pescoço dela. Seria quase como um ataque, entende? Como se as abelhas estivessem brabas porque o garoto estava brabo, pois havia visto as duas mulheres juntas. E as abelhas seriam capazes de sentir essa emoção nele. Sabe, ele não estava entendendo o que havia acontecido. “O que a minha mãe está fazendo? Será que irei perdê-la? Quais as intenções dessa doutora? Será que é minha amiga ou da minha mãe? Estão as duas mentindo para mim?”. Tudo isso passava pela cabeça dele. Então, conceitualmente, essa passagem com as abelhas precisaria ser mais agressiva. Mas fazer cinco abelhas, sejam reais ou geradas pelo computador, é um desafio muito grande. Por isso acabamos nos contentando com apenas duas. Como resultado, ficou menos assustador e mais romântico, digamos. Mais sensível. Quase como um prenúncio ao desenlace físico que se daria entre elas depois.
Você conhece o Brasil?
Bom, você não vai acreditar, mas muitos anos atrás cheguei a comprar um terreno no Brasil. Veja só! Foi na Bahia, onde estive há muito tempo. Tinha a intenção de construir, pois me pareceu um lugar mágico, bom para passar as férias, ou a aposentadoria (risos), mas nunca sobrou tempo. Se chama Barra Grande, e é lindo, porém de difícil acesso. Quase um paraíso perdido.
E o que conhece do cinema brasileiro?
Tem um filme brasileiro que está todo mundo por aqui falando a respeito. É raro isso acontecer, mas já ouvi tantas pessoas falando bem sobre ele, que com certeza irei atrás. É bem recente, e parece ser fantástico. Está em exibição em alguns lugares. Estou bem curiosa, até pelo título: Bacurau (2019). Meu irmão, inclusive, me recomendou assistir aos longas anteriores desse diretor. Estão todos na minha agenda.
Como imagina que o público daqui irá reagir a Fale com as Abelhas?
Essa é a pergunta do milhão de dólares, talvez você possa responder com maior propriedade do que eu (risos). Mas não sei, confesso. Sei que algumas pessoas podem demonstrar alguma hostilidade em relação a esse material, mas espero que os públicos certos consigam encontrar o filme. Não há nada a temer nele. É uma história de amor, e sobre pessoas comuns, certo? No mais, o Brasil sempre me pareceu tão aberto a respeito de questões sobre sexualidade, que talvez, por uma perspectiva mais religiosa, venha daí o conflito. É muito contraditório. Mas torço para que seja aceito.
(Entrevista feita por zoom em janeiro de 2021)
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