Filha de dois nomes mais do que reconhecidos – a mãe é Sandra Werneck, diretora de Cazuza: O Tempo Não Para (2004) e o recente You Tubers (2020), entre outros, e o pai é Silvio Da-Rin, responsável por documentários como Hércules 56 (2006) e Missão 115 (2015) – era mais do que natural que Maya Da-Rin crescesse no meio desse universo. Seus primeiros passos na área, portanto, foram nos bastidores dos trabalhos dos pais, com quem chegou a trabalhar, inclusive. A primeira experiência como realizadora foi o curta E Agora, José (2002). De lá pra cá, foram mais algumas experiências no formato, até chegar ao aclamado A Febre (2019), sua estreia na ficção em longa-metragem. O título, premiado nos festivais de Locarno, Brasília, Chicago, Lisboa, Mar Del Plata, Rio de Janeiro e Thessaloniki, está finalmente ao alcance do público: já nas salas de cinemas, e logo, também, nas plataformas de streaming. Aproveitando o lançamento, fomos conversar com a cineasta, que falou sobre sua formação, as influências que guiam seu trabalho e como espera que ele seja recebido. Confira!
Olá, Maya. Vamos começar falando um pouco a teu respeito? Afinal, você vem de uma família ligada ao cinema…
Olha, nem sei como tudo aconteceu. Essas coisas se dão de forma tão orgânica, que é difícil determinar um certo momento da vida para identificar com o antes e o depois, sabe? O cinema sempre esteve próximo na nossa casa. Os meus pais, nossos amigos, todos eram do meio. Sempre fui muito de frequentar as salas de cinema, também. Lá em casa, toda mundo via cinema a todo instante, o videocassete estava sempre ocupado. É uma lembrança muito presente, uma cultura de assistir e conversar sobre cinema. Meu pai e minha pai fazem cinemas muito particulares, cada um tem um estilo muito diferente do outro, e o meu é diferente dos deles. As trocas entre nós são muito fortes, para todos. Nos influenciaram mutuamente. Trabalhei em alguns filmes da minha mãe, escrevendo o argumento de um deles e como assistente de direção de dois outros. Já faz tempo, quando estava começando, mas foram experiências que nunca esquecerei.
Bom, e como nasce o A Febre?
Não sei se existe um momento preciso. Foi do meio disso tudo, posso afirmar. A história foi se transformando, sendo construído em camadas. Veio muito da pesquisa, o argumento já estava consolidado dentro de mim, e aos poucos fomos elaborando o roteiro, a partir do que íamos percebendo. As experiências nesses lugares alimentaram muito esse processo de escrita. Tivemos vários tratamentos do texto, depois o momento de encontro com os atores. Um ano pesquisando quem poderia atuar nesses papeis, em testes. Visitando as comunidades indígenas. Muito a partir de improvisações, construindo as cenas. Reescrevi a partir do que tínhamos trabalhado e das pessoas que íamos conhecendo e nos aproximando.
O que era urgente, para você, discutir através desse filme?
Me interessava pensar, numa primeira questão, sobre esse universo familiar e afetivo entre as pessoas. Quando a gente migra para um outro lugar, uma outra cidade, estamos abertos a nos deparar com um contexto que pode ser desafiador. Pode ser que exista uma questão do preconceito, de racismo. São culturas com formas de saber muito diferente, elementos e modos de vida. É preciso ter a compreensão de uma organização social muito diferente da que se conhecia. Existe um desafio grande de adaptação e convivência. É uma luta para conquistar esse espaço na cidade. A constituição de 1988 veio para garantir esses direitos, afinal, foi a partir dela que se começou a considerar os indígenas como cidadãos brasileiros. Há poucos filmes que retrataram essa realidade, dos indígenas nas cidades, desses movimentos de deslocamentos, não apenas físicos, mas de diversos sentidos.
Como surgiu o núcleo de protagonistas de A Febre?
Tinha um desejo de abordar essa família, a partir da relação entre pai e filha, como vivem intimamente. O mundo interior era importante. Ao mesmo tempo, como cada membro dessa família tem a sua forma de se relacionar, como enfrentam esse movimento de deslocamento. A jovem está se mudando para Brasília, quer estudar Medicina, mas o pai tem essa febre que ninguém consegue diagnosticar. É uma metáfora, afinal, pois cada personagem lida da sua maneira.
Qual o significado dessa febre, afinal?
Acho muito interessante o fato de que cada pessoa que assiste ao filme traz a sua interpretação. A febre dele afeta o corpo físico, mas não é causada por questões físicas. É um mal-estar gerado pelas dificuldades da cidade, tudo que esse ambiente representa. É uma febre maior. Hoje em dia, com a pandemia, pode permitir uma leitura, mas quando filmamos era outro momento. O Brasil era muito diferente do de agora. Então, é possível que se perceba de outra maneira, apesar dessas questões que se tornaram muito presentes hoje. Mesmo assim, ainda está em jogo o que Justino está vivendo, o que se passa com ele. Cada modo que a sociedade estabelece para se relacionar com outras formas de vida. Como sempre colocamos o homem como superior às demais formas de vida, inclusive os animais. Nosso pensamento e sociedade subjuga tanto os outros e não é capaz de estabelecer uma relação horizontal e justa com o mundo que a gente vive. Mas esquecemos que, enquanto espécie, não podemos viver sozinhos.
O protagonista de A Febre, Regis Myrupu, foi premiado como Melhor Ator em Locarno e Brasília. Como você o encontrou?
Conversei com mais de 500 pessoas. Mas veja bem, eram conversas, não testes. Fomos nas aldeias, em comunidades indígenas de Manaus, convidando quem tivesse interesse em participar do filme para falar conosco. Dessas, um grupo menor, de 100 pessoas, vieram até a gente, e aí já estávamos com a câmera. Era outro processo, que fazia sentido dentro do contexto do filme, A maior parte das pessoas nunca havia participado de um filme. O Regis é um ator agora, mas foi a primeira experiência dele no cinema.
Como foi o trabalho com ele?
Foi um processo muito especial. Primeiro, passei uma semana na casa dele. Falamos sobre o roteiro, tivemos muitas leituras. Nos ensaios, contávamos histórias uns aos outros. Ele trouxe muito da trajetória dele, e do que havia escutado. Afinal, a tradição oral, que passa de uma geração a outra, é muito forte entre os indígenas. Alguns desses relatos estão presentes no filme, como a do macaco. A memória é forte, de todos os atores indígenas. Para incorporar os diálogos, era preciso tê-los presentes nas cenas. Descobri uma facilidade até maior do que a que passei com atores profissionais. O Regis tem uma presença que vem do olhar, é preciso nos gestos, é algo dele, que trouxe consigo. Foi um dos motivos de tê-lo escolhido. Percebi de imediato que tinha encontra o ator certo.
A Febre circulou o mundo. Como você percebeu as reações por onde o filme foi exibido?
Estive em alguns festivais, apenas. Foi um período que pude viajar pouco, pois estava amamentando. Mas os retornos mais interessantes que recebi foram do público indígena. Eles, do Alto Rio Negro, fazem conexões que quem não é de lá percebe de outra forma. Que ameaças são essas, o que é ameaçador e selvagem para cada um de nós? Isso vai ser interpretado de uma maneira muito específica, dependendo da origem sociocultural de cada espectador, das referências que trazemos ao assistir ao filme. É interessante que seja assim, pois cada um vai dialogar com o filme de uma maneira. Em Locarno e em todos os festivais tivemos críticas muito bonitas, ficamos felizes e surpresos com o acolhimento que o filme teve.
Num Brasil tão caótico como o que estamos vivendo, o que A Febre tem a dizer?
Então, filmamos em 2018, realmente num outro Brasil. Não imaginava que a extrema-direita chegaria ao poder do jeito que foi, de uma forma tão sombria. O filme foi escrito antes disso, portanto, e trazia questões daquele momento. Estudar medicina num sistema de cotas, por exemplo, um recurso que possibilitou o acesso de tanta gente, são políticas que vem sendo destruídas, interrompidas. Estamos agora num momento de perceber que o Brasil viveu uma democracia, naquele tempo eram possíveis, e agora estão sendo descontinuadas. Uma série de garantias da constituição de 1988 também não estão sendo cumpridas, nem praticadas. Vidas são perseguidas, uma grande omissão do estado em relação ao coronavírus, por exemplo. Essas pessoas, essa forma de ver o mundo, no entanto, sempre estiveram no Brasil, de alguma maneira, desde 1500. O país continua tendo essa mentalidade. Isso é o mais assustador. A Febre conta a história de uma família indígena que está lidando com esses desafios e preconceitos, um encontro de mundos, de diferentes projetos de sociedade e que agora são ainda distantes. De certa forma, o filme dialoga muito com o Brasil que estamos vivendo, mesmo que não tenha sido pensado para tal. Captamos no ar.
(Entrevista feita por telefone em novembro de 2020)
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