Crítica


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Sinopse

Quatro influenciadores digitais brasileiros arrebatam milhares de seguidores. O filme mostra a rotina, os bastidores da produção de conteúdo e as relações dessa nova leva de celebridades que chegam a ser reconhecidas nas ruas.

Crítica

A porta de entrada ao universo dos influenciadores digitais constitui uma das principais surpresas deste documentário. Por definição, estes jovens são condicionados à presença nas redes sociais, em meio ao universo da produção de vídeos, dos computadores e dos celulares. Ora, Júlia Tolezano, a Jout Jout, é vista no quintal de casa, lavando peças de roupa no tanque, e criticando a dificuldade de tirar a areia do biquíni. Spartakus Santiago está tomando banho pela manhã e fazendo oferendas aos orixás. Arnaldo Taveira, o Apóstolo Arnaldo, colhe frutas num pomar, e Guilherme Terreri, a Rita von Hunty, guarda roupas no armário quando volta de viagem. Para quem espera tecnologia e ultraconectividade, os diretores Sandra Werneck e Bebeto Abrantes oferecem uma pausa do mundo digital, colocando seus protagonistas em contato com a natureza, sobretudo sozinhos, deitados em suas redes ou limpando uma piscina. Deste modo, reforça-se a intenção de conhecer a pessoa por trás dos avatares, ao invés de investigar as configurações do concorrido e pouco transparente meio virtual. Poucos computadores e celulares serão vistos em cena. You Tubers (2020) – assim mesmo, separado, para diferenciar da plataforma e reforçar o “you”, a subjetividade – observa a dinâmica do YouTube pelo avesso.

A linguagem escolhida pelos cineastas reforça esta vontade tão curiosa quanto contraditória de compreender o trabalho destes jovens longe da estrutura de trabalho. O filme possui cenas longas, contemplativas, em planos abertos na natureza. Trabalha-se com luz natural, poucos cortes, sustentando um aspecto de bate-papo descontraído, não roteirizado. Abrantes e Werneck inclusive se colocam em cena, elogiando um dos vídeos de Jout Jout. Assim, dialoga-se com a dinâmica dos vídeos caseiros por oposição: ao contrário das imagens de jovens filmando a si mesmos, olhando diretamente para a câmera, sorrindo demais ou disparando frases de impacto, com luz bem cuidada e montagem ágil e fragmentada, aposta-se nas conversas a esmo, nunca voltadas à câmera (o olhar da direção se encontra em algum ponto distante), sem intervenções de trilha sonora ou demais adereços. Trata-se de um olhar aos youtubers quando não são youtubers. Em paralelo, os diretores fogem ao caráter de revelação: não há grandes descobertas de bastidores, nem revelações curiosas para fãs dos protagonistas. Mesmo o senso de espetáculo e urgência, tão comum à dinâmica da Internet, desaparece. Paira um teor quase terapêutico nesta conversa dos personagens consigo mesmos, refletindo sobre a vida, sobre a família, sobre a imagem que fazem de si próprios.

Ao mesmo tempo, pelo recorte limitado e preciso, o filme esclarece qual tipo de influenciadores lhe interessam: os jovens de discurso progressista, contestador, em graus variados de identificação com a esquerda institucional. O fenômeno dos youtubers de direita, bolsonaristas, daqueles que espalham notícias fantasiosas sobre vacinas contendo o vírus do comunismo e outras fake news, estão ausentes. É interessante que eles não sejam sequer citados pelo projeto. Werneck e Abrantes eliminam da narrativa qualquer forma de atrito – sendo esta outra oposição fundamental à dinâmica das redes sociais. Os jovens não são confrontados a opiniões controversas que tenham emitido no passado, não comentam os trabalhos uns dos outros, e discorrem pouquíssimo sobre a difamação e as campanhas de “cancelamento”. Cria-se um filme de encontro, ao invés de um filme de confronto, resultando numa sensação única: por um lado, funciona enquanto respiro do ambiente claustrofóbico e tóxico das comunicações virtuais, por outro lado, deixa de abordar questões fundamentais relacionadas à utilização das redes sociais na contemporaneidade. O conflito, em alguma medida, seria necessário para aprofundar o questionamento, provocar reflexão e interpelar o espectador.

Esteticamente, o despojamento também se traduz em ambição limitada de refletir sobre a forma de comunicação que os jovens criaram para si mesmos. O YouTube não proporciona apenas conteúdos distintos, mas também uma padronização estética, a qual seria interessante que o filme questionasse de alguma maneira. O que existe fora do enquadramento das falas destes influenciadores? Qual suporte é necessário para fazer os vídeos existirem? Que imagem criam sobre seus corpos, seus rostos, suas marcas? O documentário encara o quarteto enquanto produtor de conteúdo, mas evita a questão da criação de linguagem, ou seja, da criação de formas. O tema da celebridade se impregna no retrato discretamente, pelas frestas. Spartakus Santiago, o mais vaidoso dos quatro, revela uma parede de tuítes positivos impressos e colados em forma de mural, para valorizar o ego. Ele enumera rapidamente o número preciso de seguidores que possui em cada plataforma, enquanto Jout Jout desconhece a quantia específica de inscritos e questiona a noção de “seguidores” – o que se assemelharia a algum movimento, seita ou culto. A variedade entre eles, tanto apresentados como si próprios, “sem maquiagem”, seja travestidos (Rita von Hunty) ou em forma de caricaturas (Apóstolo Arnaldo), constitui uma das riquezas do discurso.

Ao final, You Tubers elucida pouco sobre os youtubers, o que constitui seu maior acerto e sua possível fraqueza. Ao evitar a abordagem mais óbvia do tema, permite uma experiência fluida e agradável, fruto de uma montagem que sublinha a diferença de olhar entre o cinema e o celular pessoal. Os protagonistas dissertam tanto sobre a evolução de seus vídeos quanto sobre as relações familiares, as viagens que fazem, as casas onde moram. Embora o imaginário coletivo trate estas pessoas enquanto figuras de exceção, Werneck e Abrantes decidem dar um passo atrás e buscar, por trás das perucas de Rita von Hunty ou dos chroma keys assumidamente falsos do Apóstolo Arnaldo, o que os torna parecido com cada um de nós. Conhecemos então jovens adultos politizados, encontrando uma nova forma de arte para expressarem sua indignação com os problemas da sociedade. O canal do YouTube é visto enquanto meio de expressão e performance, ao invés de uma profissão cobiçada e uma possibilidade de ascender rapidamente ao estrelado – visto que não se discute contratos, faturamento, investimento, nem equipes por trás da criação do conteúdo. Tem-se a impressão, talvez errônea, de que os vídeos sejam feitos pelos jovens sozinhos, e que estariam ao alcance de qualquer um, ignorando o funcionamento perverso dos algoritmos e todo o investimento institucional por trás da sustentação das webcelebridades. Ao menos, retira-se da persona digital seu verniz popularesco, valorizando as pessoas comuns por trás dos personagens. O filme está menos preocupado em compreender as máscaras do que conhecer quem as veste.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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