Crítica


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Sinopse

Engenheira de computação, Lilly Chan inicia uma investigação sobre a divisão secreta da empresa onde trabalha. Ela acredita que a companhia está por trás do assassinato do seu namorado.

Crítica

As gigantes tecnológicas são uma incógnita na nossa contemporaneidade. De um lado, supostamente representam uma nova forma de manter relações de trabalho – com ambientes convidativos, incentivo à criatividade e benesses que podem ser compreendidas como mutação superficial de velhas estruturas laborais para elas soarem menos opressoras. De outro, o funcionamento escuso de engrenagens essenciais, a concentração de poder nos ambientes real e virtual. Em Devs, minissérie escrita e dirigida integralmente por Alex Garland, a Amaya é a representante ficcional desses conglomerados de poder desproporcional. Seu dono, Forest (Nick Offerman, excepcional), investe na mecânica quântica como diferencial competitivo no ramo da computação. Todavia, a localização social da empresa apenas é encarada no episódio do diálogo com a representante do governo dos Estados Unidos. Algo pontuado, não aprofundado. O que importa verdadeiramente é a intrincada discussão filosófico-existencialista nuclear desse programa intrigante.

No começo, parece que o protagonista será Sergei (Karl Glusman), funcionário russo promovido à divisão secreta da empresa por conta de sua pesquisa inovadora com inteligência artificial – tópico que Garland já havia abordado no excelente Ex-Machina: Instinto Artificial (2014).  O realizador investe num clima de mistério, dando aos personagens mais informações do que ao espectador. Essa operação fica clara quando o recém-reconhecido se desespera diante do código-fonte na bizarra instalação revestida de ouro e suspensa por um instrumento magnético. Não fazemos ideia do porquê dessa revelação resultar numa resposta física, na repulsa que ocasiona o vômito. Todavia, para alguém acostumado com tecnologias além da imaginação dos meros mortais, certamente boa coisa não é. O que vem a seguir é uma trama envolvendo espionagem industrial, assassinato com fins corporativos e demonstrações da frieza do sujeito que, como tantos CEO do âmbito ficcional, é condicionado por obsessões. Mas, a protagonista passa a ser Lilly (Sonoya Mizuno).

Há um esmero na construção visual de Devs. Alex Garland ressalta determinados elementos como totens modernos. A estátua gigantesca da filha morta de Forest é um símbolo da fixação científica motivada pela impossibilidade. O dispositivo na entrada do laboratório secreto é observado como algo sacrossanto. Aliás, a série mistura deliberadamente sagrado e profano, propondo reconfiguração de alguns signos, como o livre-arbítrio e a própria noção de adoração. Simultaneamente ao enredamento de Lilly, há o entendimento de que a filosofia determinista é imprescindível à compreensão desse conjunto obscuro. O princípio que entende todos os fenômenos da natureza como inexoravelmente interconectados e dependentes, que exclui coisas como acaso e indeterminação, aproxima ainda mais a transmutação do religioso num paradigma computável. Não refutando a noção de uma divindade intangível, Garland promove uma inquietante proximidade entre os fenômenos da natureza e os protocolos praticamente infalíveis para lê-los, desde que com a tecnologia certa.

Os dois primeiros episódios de Devs, nos quais reinam os enigmas, são os melhores dessa minissérie composta de oito partes. É possível conjecturar que Alex Garland tenha sofrido algumas pressões para tornar o desenvolvimento da trama palatável, a julgar pelos instantes em que explicações são oferecidas como saídas a desentendimentos que representam nossa ignorância. A excelente personagem de Alison Pill chega a permanecer num vasto espaço de tempo diante da tela do Devs para que tenhamos acesso a cenários do passado. Esse didatismo reduz o mistério em alguns momentos-chave, opção importante para que os leigos em física, informática, filosofia e afins não se sintam completamente à deriva, mas que depõe contra a noção de incógnita, importante no começo. A tese de que não há apenas um mundo, mas vários, é bem articulada nas cenas com distintas possibilidades convivendo. O resultado, porém, parece realmente uma queda de braço entre a vontade de mergulhar no desconhecido e a “necessidade” de tornar aquilo tudo bastante acessível.

O dado conspiratório, a briga geopolítica travada no campo tecnológico e da espionagem, a mitificação das figuras intensas – como o ótimo leão-de-chácara vivido por Zach Grenier – acabam disputando atenção com coisas menos extraordinárias. Lilly restabelece uma dinâmica afetiva com Jamie (Jin Ha) e isso acaba tomando espaço demais. A utilização do mendigo que vive em frente ao apartamento da protagonista é chamativa, motivo pelo qual é evidente sua participação naquela contenda. Porém, tirando as concessões que parecem realmente fruto de uma briga constante entre criativos e assinadores de cheque (lembrando que isso é uma suposição fundamentada pela maneira como as coisas acontecem), Devs é um título de valor na construção da carreira de Alex Garland como especialista em vislumbrar-nos (e as nossas tragédias) por meio da ficção científica. Se permanecesse mais atmosférica, menos explicativa, poderíamos ter nela uma obra-prima daquelas que volta e meia mexem as placas tectônicas da televisão. Mas, ainda assim, fragilizada, ela é valiosa.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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