Crítica


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Sinopse

Na Islândia, Mia ajuda seu amigo Rob a cobrir uma morte acidental. Quinze anos depois, Rob quer confessar seu crime, levando Mia a matá-lo e descartar seu corpo. Pouco depois, Mia testemunha um acidente de rua entre um pedestre e um veículo auto-dirigido. Shazia é contratada para investigar o acidente e usa um dispositivo Recaller que lhe permite ver as lembranças recentes daqueles entrevistados. Durante uma entrevista com Mia, Shazia descobre uma reação em cadeia, e vê lentamente o que mais aconteceu naquela noite.

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Crítica

Imagine ter acesso a suas memórias recorrendo a um simples aparelho que lhe faz resgatar fatos e acontecimentos, marcantes ou não, de toda a sua vida? A ideia parece fantástica no papel, mas como mostra o episódio Crocodile, de Black Mirror, não é bem assim que as coisas funcionam. Aliás, como em sua ampla maioria, as histórias da série tendem a mostrar, em maior ou menor grau, como o uso das novas tecnologias pode ser deturpado por um simples fator: a mão humana. Neste caso, em específico, como o sentimento de autopreservação que cada um carrega pode apontar para várias direções. Inclusive as mais trágicas possíveis.

É neste mundo que vive Mia (Andrea Riseborough), arquiteta bem-sucedida que mora com o marido e o filho pequeno em uma casa isolada, porém, toda construída à base de vidro, sem grande privacidade. Em uma viagem para uma palestra, ela recebe no quarto de hotel Rob (Andrew Gower), seu namorado de 15 anos atrás. Naquela época, a separação se deu após um acidente em que ele dirigia bêbado e ela, no mesmo estado, estava ao seu lado. O motorista atropela e mata um ciclista. Ela, mesmo protestando, concorda em jogar o corpo do alto de uma gelada montanha. Hoje Rob quer confessar seu crime, pois a culpa toma seus dias, enquanto ela só pensa em o quanto sua vida mudou para melhor e toma a decisão de matar o antigo companheiro.

Em paralelo, Shazi (Kiran Sonia Sawar), funcionária de uma companhia de seguros, recebe a missão de desvendar o que aconteceu durante outro acidente, menos fatal, que acabou quebrando o braço de um músico. Se conseguir resolver o caso em 24 horas, ganha em dobro o valor do serviço. Ela corre contra o tempo colhendo depoimentos de testemunhas do acidente. Sua arma é o tal aparelho que reaviva as memórias dos outros, indispensável para chegar à verdade sobre o ocorrido. Algo que, fatalmente, vai deixar a garota frente a frente com Mia.

É interessante notar essa dupla jornada até seu clímax, já que tanto Mia quanto Shazi, em graus diferentes, mostram a mesquinhez do ser humano. Para a funcionária da corretora, é a chance de uma vida melhor. Vivendo modestamente com o marido e o filho ainda bebê, ela não tem muitos escrúpulos para conseguir seus depoimentos, mesmo que sob uma aura de simpatia e generosidade. O modo como entrevista um dentista, que tem um segredo que não gostaria de revelar para alguém, chega a ser questionável, já que o aparelho em suas mãos tira qualquer direito à privacidade. Em sua defesa, ela alega que, por lei, uma testemunha de um crime não pode se negar a falar sobre o assunto. Porém, sua trajetória parece como a de qualquer trabalhador de hoje e sempre, que volta e meia precisa pisar nos próprios princípios para garantir seu sustento.

Assim, a trilha de sangue de Mia se torna ainda mais desoladora e passível de julgamentos. Afinal, desde quando matar pode ser algo a ser apreciado? Assim como os irmãos Joel e Ethan Coen fizeram em Fargo (1996), seu caminho após matar Rob vai se tornando cada vez mais errático, com uma bola de neve de crimes que vão se acumulando, parecendo não ter fim. O retrato da personagem antes e depois do acidente ocorrido na juventude também reflete em sua pele. Se 15 anos antes ela era alguém cheia de vida, com seus longos cabelos ruivos, no presente sua aparência opaca de cabelos quase brancos e curtos (que não fazem contraste nenhum à sua pele quase albina) remete a uma frivolidade que também é retratada no contato quase sem emoção com a família em casa.

Aliás, a aparência andrógina de Mia também faz uma inversão de papéis a que todos eram acostumados até décadas atrás: ela é “o homem” da casa, seja provendo o sustento como também tendo um distanciamento afetivo do filho, que é criado 24 horas por dia pelo pai. Chega a ser uma crítica, ainda que das mais subjetivas do episódio, ao machismo, com os homens da casa geralmente sendo frios e distantes. Mesmo o choro após matar suas vítimas parece lágrima de crocodilo (e talvez por isso o nome do episódio), pois o sentimento que passa pós-crimes não é de alguém arrependido por suas escolhas, mas sim por entender que, a partir daqueles momentos, sua vida será um inferno. Então, até que ponto essa autopreservação pode ser justificada se sua própria mente será abalada de uma maneira ou outra?

Com duas atuações principais totalmente seguras (especialmente a de Riseborough), este é um dos episódios mais eficientes de uma quarta temporada tão criticada pelos fãs da série. Não que seja isento de falhas. A cena em que Mia, uma mulher baixa e magérrima, consegue sufocar Rob com seu próprio corpo pode até parecer fora da credulidade necessária, assim como a resolução final também levanta questionamentos sobre o uso do aparelho de memórias com animais. Ainda assim, seu discurso permanece forte sobre a ganância do ser humano em manter a todo custo o que parece ser seu por direito, mesmo que isso leve a prejudicar outras pessoas, ainda mais com o intenso arco de suspense que vai se formando ao longo de quase uma hora. Também é interessante notar como esta tecnologia aqui parece ser uma versão anterior do gadget de memórias de The Entire History of You, terceiro episódio da primeira temporada da série – e um dos mais aplaudidos até então.

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é crítico de cinema, apresentador do Espaço Público Cinema exibido nas TVAL-RS e TVE e membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Jornalista e especialista em Cinema Expandido pela PUCRS.
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