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Sinopse

Asha vive num reino em que os desejos de todos os plebeus são protegidos por um rei/mago extremamente poderoso. Mas, com a ajuda de seus amigos e de uma estrela, ela vai começar uma verdadeira jornada para descobrir a verdade e ajudar a restituir os anseios de todos.

Crítica

Em algumas das animações mais clássicas da Disney, a monarquia é idealizada como uma espécie de Olimpo desejado. Nelas, todos os plebeus queriam ser príncipes e/ou princesas. A antítese da realidade triste e sofrida de Cinderela é, basicamente, a corte real personificada pelo príncipe encantado que tenta desvendar a identidade de sua amada a partir de um sapatinho de cristal. A Bela Adormecida finalmente acorda depois do beijo de quem? Exatamente do herdeiro do trono. Então, mesmo que de modo aparentemente inocente, essas histórias que conquistaram gerações trataram de romantizar esse regime de governo baseado na hereditariedade, centrado em privilegiados que supostamente teriam sido escolhidos por Deus para comandar as vidas dos demais. Feita a introdução, Wish: O Poder dos Desejos demonstra, ao menos, um pé atrás diante de homens garbosos que assumem tronos e reivindicam para si a proteção da população. A protagonista da trama é Asha (voz original de Ariana DeBose), jovem moradora do reino de Rosas, localidade protegida por um mago superpoderoso. Magnífico (voz original de Chris Pine) criou uma terra em que todos são bem-vindos. O rei coleta o desejo das pessoas assim que elas atingem a maioridade, o salvaguardando até que, talvez, um dia possa os realizar. É de se estranhar que antes de Asha ninguém tenha percebido o quão suspeito é esse modus operandi.

O Magnífico se encaixa naquela categoria de “bom demais para ser verdade”. Monarca bondoso, altruísta, supostamente um pai ao reino de Rosas, ele demonstra a sua verdadeira faceta ao ter os métodos questionados pela adolescente que ainda conserva seus desejos incandescentes. O rei fica especialmente incomodado com o objetivo de alguém de produzir arte e com isso inspirar os demais. É justamente nesse ponto que Magnífico teme as revoluções, assumindo o lugar de vilão de Wish: O Poder dos Desejos, um dos típicos filmes da Disney em que basta ter força de vontade e unir-se num só coração para derrotar o mal, por mais invencível que ele possa parecer. No entanto, o interessante está nessa quebra do paradigma da realeza como um oásis ao qual almejar. Magnífico é revelado como déspota ao perder as estribeiras por ser enfrentado, alguém que somente consegue governar porque retira das pessoas seus preciosos desejos, os projetos e a capacidade de querer. Sem anseios não há movimento, sem movimento tampouco há questionamento e sem questionamento a posição dos poderosos permanece intacta. Isso não quer dizer que a nova animação da Disney é um manifesto socialista/marxista – o que seria um contrassenso vindo de um dos conglomerados mais imperialistas do mundo. Porém, ao menos a mensagem que orienta o enredo aponta um poderoso como fonte primordial dos problemas.

Aisha é a típica heroína humilde e corajosa, mas que precisa da ajuda dos amigos para conseguir o impossível. Outro ponto positivo: ela não é a mocinha que depende de um interesse amoroso para enfatizar as suas convicções. Enquanto desenvolve um enredo cheio de expedientes previsíveis (ainda que isso não chegue a atrapalhar a boa experiência com o filme), Wish: O Poder dos Desejos se transforma também numa espécie de pot-pourri dos próprios estúdios Disney. Os melhores amigos de Aisha correspondem aos anos da Branca de Neve (com direito a um baixinho enfezado que, lá pelas tantas, se intitula “zangado”). Há menções a Peter Pan, ao aprendiz de feiticeiro Mickey de Fantasia (1940) – aliás, uma caneta autônoma começa a desenhar o mascote do estúdio tão logo ganha vida. Há citações de Mary Poppins, Bambi e à Fada Madrinha de Cinderela. Nesse sentido, os diretores Chris Buck e Fawn Veerasunthorn aproveitam a típica história de insurreição valente à lá Disney para celebrar o legado de uma empresa que ditou em alguns momentos as tendências da animação em longa-metragem no mundo. Os números musicais e os animais/plantas falantes da floresta também são reverentes à tradição da empresa fundada por Walt Disney. Sorte que essa autocelebração é bem distribuída e não chega a se tornar um ruído atrapalhando a trama rumo ao embate entre o bem e o mal. O resultado é bom.

Menina negra (de pele pouco retinta), Aisha não deseja se tornar esposa de príncipe ou algo que o valha. Aliás, os monarcas nem filhos têm, o que é curioso dentro desse regime fundamentado na transmissão hereditária de poder para ele não escapar das famílias de “sangue azul”. Com a ajuda de uma estrelinha para lá de graciosa (com algumas gags físicas boas, sobretudo as que envolvem um novelo de lã), a protagonista de Wish: O Poder dos Desejos defende com unhas e dentes a importância do desejo à experiência humana. Por ser esclarecida, ela é a mais apta para conduzir as pessoas ao conhecimento e à verdade. Chris Buck e Fawn Veerasunthorn conseguem imprimir certa personalidade nessa geleia conhecida com sabor de fórmula desgastada. Em grande parte, isso se deve à fuga de certos lugares-comuns dos filmes de princesa da Disney, sendo um deles a observação do perigo da existência de alguém que tome decisões arbitrárias capazes de impactar a vida de seus súditos. A animação reforça coisas como amizade, altruísmo, companheirismo, senso de pertencimento e coragem. Com números musicais divertidos (bonitos de ver e ouvir), um Deus Ex Machina encarregado de aparar até mesmo as arestas mais cheias de farpas (que davam vantagens estratégicas ao vilão) e uma boa dose de romantismo, o novo longa animado da Disney ganha pontos pelo modo como tensiona as relações de classe – mesmo que a monarquia como regime nunca seja de fato questionada, somente o rei Magnífico.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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