Crítica
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Crítica
As performances são o princípio (narr)ativo de Uyra: A Retomada da Floresta. Sua protagonista é a artista bióloga trans não binária e indígena Uýra Sodoma (Emerson Pontes). Também coautora do roteiro, ela é o corpo resistente reivindicando uma reconexão com a ancestralidade da qual foi privada até a adolescência. A parte tradicional desse documentário com largos espaços à invenção poética é feita de depoimentos repletos de tons confessionais. Neles, Uýra lamenta não ter contato desde cedo com a própria história, assim desconhecendo durante muito tempo a ascendência indígena – justificativa à sensação de vazio até então inexplicável. Alternadamente, a cineasta Juliana Curi mostra algumas performances dessa protagonista que se veste de entidades da natureza a fim de denunciar os aspectos nocivos do capitalismo e dos pactos da branquitude. Como quando Uýra aponta à poluição mortal do córrego amazonense diante dos olhares curiosos da plateia de ribeirinhos que a registra com seus celulares. No entanto, podemos pensar que tudo se trata de performance, não apenas os instantes em que a artista evidentemente se apresenta diante da câmera com suas personas criativas. Até quando está testemunhando fatos da sua vida, ou expondo conceitos a respeito da necessidade de uma simbiose com a floresta, Uýra Sodoma se expressa por meio de uma personagem calculada.
Isso de “se expressa por meio de uma personagem calculada” não quer dizer que Uýra Sodoma esteja fingindo ou falseando os próprios feitos e dores. De acordo com algumas linhas de pensamento e estudo sobre o documentário, as pessoas que têm ciência de serem filmadas, automaticamente, estabelecem corpos cênicos. Dentro dessa perspectiva, ninguém está imune de se autorrepresentar. No entanto, há graus de aparente espontaneidade nesse processo, com gente parecendo solta e outras mais claramente afetadas por essa consciência de ser filmado. Em Uyra: A Retomada da Floresta, podemos dizer que Uýra Sodoma demonstra preocupação com a imagem a ser transmitida ao espectador. Tanto que suas falas (sempre ricas e repletas de uma insatisfação indignada) são caracterizadas por certa solenidade, talvez um sintoma também do ambiente acadêmico do qual faz parte como pesquisadora. Porém, nada disso depõe contra o percurso poético desse documentário pouco ortodoxo (o que é ótimo) ocupado de uma figura exemplar para compreendermos o que efetivamente significa a palavra “resistência” dentro de perspectivas e contextos sociais bem específicos. Uýra mora na periferia de Manaus, espaço sucateado por décadas de abandono do poder público, e integra a comunidade LGBTQIAPN+, algo enfatizado na segunda metade desse filme com pouco menos de 60 minutos de duração.
Não é função do crítico de cinema arbitrar a respeito da duração dos filmes. No entanto, dentro do processo analítico, cabe a ele a reflexão acerca da utilização desse tempo por realizadores e realizadoras em prol de certo desejo. Tendo isso em vista, Uyra: A Retomada da Floresta deixa a sensação de possuir certas sequências esticadas em prol da garantia da metragem longa. E isso não diz respeito às performances artísticas, às elaborações das entidades inventadas que representam a conexão com o ecossistema, mas aos depoimentos um tanto redundantes. Aliás, o longa-metragem é mais bem resolvido em seu aspecto imagético, na construção das imagens que apresentam a interação da artista com as pessoas e os cenários. No que diz respeito à palavra, a produção assume uma postura mais convencional, sem ao menos valorizar a oralidade tão fundamental à cultura dos povos indígenas. De um lado, o corpo pintado e ornamentado interage com o meio ambiente para gerar rupturas e provocações. Do outro lado, os testemunhos de uma vida sofrida, repleta de exclusões e desafios cotidianos, mas que nunca transcendem o seu caráter meramente ilustrativo. Aliás, é curioso que, ao contrário do que costuma acontecer, aqui é a palavra que assume a função de ilustração e não a imagem. Desse jeito, a “harmonia” entre as imagens e palavras se dá pela subserviência da segunda à primeira.
Uyra: A Retomada da Floresta é um daqueles filmes que merecem atenção, logo de cara, pela intenção/capacidade de dar visibilidade a pessoas e trabalhos constantemente marginalizados. No começo, Uýra Sodoma é enxergada quase isolada, performando sozinha, falando acerca dos desafios cotidianos e das angústias relacionadas à descoberta tardia do seu pertencimento. Ela se define frequentemente como artista “atravessada” (a palavra é repetida inúmeras vezes) tanto pelas violências sofridas quanto pela origem indígena que a convoca à reflexão. Aos poucos, Uýra é percebida em contextos coletivos, como nas oficinas que ministra e na festa animadíssima em que solta as suas feras sem medo de sofrer as consequências nefastas de viver no país que mais mata ambientalistas e transexuais no mundo. Juliana Curi parece um pouco indecisa entre os caráteres informacionais e poéticos como prioridade no seu longa-metragem. Também parece lhe escapar pelos dedos a ideia da performance inclusive nos depoimentos, da protagonista criando um corpo cênico para falar como pessoa física. Se isso fosse aproveitado como insumo cinematográfico, provavelmente, o filme ganharia camadas interessantes. No entanto, a essa valorização da linguagem a realizadora preferiu salientar a protagonista e seu meio de expressão, como na belíssima cena em que Uýra Sodoma navega pelo rio como rainha.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
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Marcelo Müller | 6 |
Miguel Barbieri | 6 |
Alysson Oliveira | 6 |
Francisco Carbone | 7 |
MÉDIA | 6.3 |
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