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Sinopse

Em Trilha Sonora para um Golpe de Estado, jazz e descolonização estão entrelaçados nesta montanha-russa histórica, que reescreve o episódio da Guerra Fria que levou os músicos Abbey Lincoln e Max Roach a invadirem o Conselho de Segurança da ONU em protesto contra o assassinato de Patrice Lumumba. Indicado ao Oscar 2025.

Crítica

Os filmes feitos hoje sobre o passado falam mais de hoje do que do passado. Tendo essa máxima (que não é novidade e tampouco inédita) como guia, podemos perceber que Trilha Sonora para Um Golpe de Estado aborda questões geopolíticas muito importantes dos anos 1960, mas que continuam infelizmente fervilhando na atualidade. Neste documentário indicado ao Oscar 2025, o cineasta Jonah Grimonprez exuma a atuação imperialista de nações como os Estados Unidos e as colonialistas europeias, com isso visando ressaltar a importância da resistência de países historicamente explorados em busca da própria soberania. Em 150 minutos o cineasta cria uma trama frenética e às vezes errática envolvendo a luta do Congo para se livrar do domínio belga, em meio a isso ressaltando a utilização de instrumentos que deveriam ser supostamente neutros (a ONU) à dominação com outra roupagem. Para tornar essa narrativa singular, o realizador se vale do jazz, não apenas citando a sua instrumentalização oficial, mas o aproveitando como trilha sonora e pano de fundo. Às vezes isso funciona muito bem, noutras essa associação entre política e música parece apenas uma tentativa sem fôlego suficiente para ser o fio condutor. O resultado é uma experiência prolixa, cansativa, mas ainda assim com algumas passagens bem valiosas. Se os filmes fossem medidos pela relevância de seus temas a nota dele seria praticamente dobrada.

Trilha Sonora para Um Golpe de Estado parte de uma impressionante pesquisa de arquivos. Nele não há longas entrevistas com especialistas ou personagens do presente ponderando acerca dos acontecimentos do passado. Desse modo, a montagem assinada por Rik Chaubet é a principal responsável por dar sentido à associação entre as imagens, os sons e os recortes da imprensa, fontes fundamentais na construção desse longa-metragem com veemente discurso revolucionário. Ainda sobre a montagem, ela emula o ritmo do jazz, a sua impressibilidade, a forma como os acordes são dispostos inesperadamente a fim de conjurar uma entidade viva. Porém, o resultado nem sempre é cinematograficamente tão recompensador como nesse gênero musical nascido nos EUA, sobretudo por conta da dispersão gerada como efeito colateral. O roteiro a cargo de Johan Grimonprez e Daan Milius é o principal ponto fraco de um filme poderoso quando consegue correlacionar imagens e sons aparentemente desconectados. Por mais que o espectador esteja com os olhos grudados na tela, que não divague em nenhum momento desse extenso e incisivo relato, é possível que ele se perca em algum ponto da trama. Zero problema em “se perder”, mas desde que o filme abraçasse a ideia de ensaio político e se desvencilhasse totalmente da sua vocação jornalística. Desde que ele não ficasse no meio termo.

O grande personagem do longa é Patrice Lumumba, primeiro-ministro da República Democrática do Congo, político assassinado após travar uma luta valente contra o governo fantoche instituído pela Bélgica – colonizador obrigado a aceitar oficialmente a independência do país africano. Na primeira metade de Trilha Sonora para Um Golpe de Estado, o jazz é uma entidade importante, principalmente porque o roteiro revela como alguns de seus grandes nomes foram utilizados em turnês de cunho político que deveriam servir de cortina de fumaça às ações do governo norte-americano. Há momentos preciosos envolvendo Louis Armstrong, Abbey Lincoln, Nina Simone, Ella Fitzgerald, Miles Davis, Duke Ellington, John Coltrane e Dizzy Gillespie. É implícita a perversidade da atuação do Estado norte-americano, sobretudo, tendo em vista a utilização de artistas negros para encobrir a manutenção do imperialismo/colonialismo numa nação africana ávida por soberania. Porém, de certo ponto em diante (mais ou menos na metade do documentário), o jazz passa a ser cada vez mais esporádico como elemento do jogo político, se transformando estritamente numa trilha sonora incidental. Pontualmente, o ritmo volta a ser observado como uma peça valiosa desse quebra-cabeça geopolítico complexo. Ainda assim é desperdiçado como recurso valioso. E o que poderia engrandecer filme perde um pouco da força.

Assumindo um posicionamento político evidentemente anti-imperialista, Trilha Sonora para Um Golpe de Estado é um filme-denúncia sobre ontem, mas de que certa forma fala de hoje. Não à toa Johan Grimonprez mergulha agora numa árdua arqueologia em busca de elementos que sustentem essa narrativa reveladora. Seu aviso de que os mecanismos de dominação das nações mais ricas sobre as mais pobres foram transformados é também sobre a atualidade. É como nos diz a máxima de O Leopardo, livro de Giuseppe Tomasi di Lampedusa: “para que tudo permaneça igual, é necessário que tudo mude”. Então, Grimonprez utiliza o passado para nos alertar a respeito de presente e futuro, principalmente sobre a continuidade dessa falsa política de bom-mocismo norte-americana e de outras potências econômicas globais, das nações mantidas poderosas às custas da miserabilidade de federações historicamente exploradas. Do ponto de vista da linguagem, objeto principal de qualquer crítica de cinema, temos um documentário que pega emprestado a rítmica do jazz para assumir uma personalidade, inserindo o gênero e seus principais personagens dentro de um panorama político cheio de reviravoltas, mocinhos revolucionários e vilões reacionários. Portanto, a ideia inicial é oferecer algo singular, indo além das entrevistas burocráticas. Louvável. Mas faltou um tiquinho de coragem para experimentar realmente e se desfazer da amarra jornalística, pensar menos na informação e mais no discurso.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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