Crítica


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Sinopse

De olho numa alternativa contra a recessão econômica, cinco amigos entram numa cooperativa. Todavia, depois de um golpe, eles perdem a ocupação e todas as suas economias. O que poderiam fazer para ter uma desforra?

Crítica

Alguns filmes trazem tantas inconsistências de roteiro, direção, atuação e discurso que soam como casos perdidos: o crítico ou espectador não consegue imaginar um projeto melhor a partir da mesma premissa. Os problemas, neste exemplo, estariam intrinsecamente vinculados ao conceito de origem. Mas este não é o caso do gaúcho Trapaça (2020). Ainda que desperte questionamentos consideráveis de ordem narrativa e de linguagem, é visível a maneira como o material bruto poderia render uma obra muito mais interessante. A questão mais urgente se encontra na montagem: nada justifica a duração de 137 minutos para uma leve comédia de erros, espécie de buddy movie sobre colegas de uma fábrica, trapaceados pelo chefe e planejando vingança. Ou melhor, algo justifica esta duração: o fato de cada cena durar pelo menos duas vezes mais do que deveria dentro do ritmo apropriado à comédia. Não se trata, portanto, de imaginar a supressão de algum trecho em particular, e sim o redesenho de cada sequência interna. Neste filme, as cenas lançam um gancho cômico, e então o repetem, esticam, dilatam, até o humor se esvair por completo. Em muitos desses casos, a piada não serve a avançar a narrativa.

Paira a impressão de assistir ao primeiro corte de uma comédia com potencial para comunicação mais ampla com o público. Os modelos nos quais o projeto se inspira – a comédia romântica, a comédia de ação, os filmes sobre roubos impossíveis ou sobre “perdedores” dando o troco num vilão trapaceiro – são bem assimilados por Luke Schatzmann. O cineasta ainda acrescenta acenos à cultura pop (Sex and the City, Spring Breakers: Garotas Perigosas, a saga Crepúsculo, Frozen: Uma Aventura Congelante) para acenar ao público jovem. Assim, quando começam as gags sobre a palavra “epifania”, sobre a “tensão sexual” entre dois personagens ou sobre os Três Mosqueteiros, a brincadeira pode provocar sorrisos, mas é repetida tantas vezes que se esgota, como uma piada cuja punchline é explicada logo em seguida. Outras cenas são esgarçadas ao limite do absurdo: a “cara de brava” de uma das amigas seria bem resolvida em dois minutos, porém ocupa uma sequência infinita, que não contribui nem a desenvolver a personalidade dos protagonistas, nem a apresentar novos rumos à trama. O mesmo vale para o longuíssimo encontro com a mesma personagem, agora transformada em performer de Madonna num bar da cidade.

Para a narrativa centrada numa vingança, o roteiro esquece por diversos momentos o objetivo dos personagens, nem apresentando os planos de retaliação ao espectador, nem aumentando a tensão rumo à recuperação de um contrato fraudulento. Às vésperas da concretização do ato dos colegas (que somente ocorre aos 116 minutos de narrativa), o roteiro ainda encontra tempo para um extenso intervalo romântico com dois pares prestes a se concretizarem. Em um gênero tão dependente do ritmo, o esgarçamento da trama resulta contraproducente. Isso decorre de uma abordagem muito específica de humor: Trapaça não aposta na comicidade das situações, absurdas por si mesmas (precisamos acreditar que aqueles adultos seriam ignorantes a ponto de assinarem um contrato sem ler, nem pedir uma cópia do documento, e ainda entregarem todas as suas economias a um chefe falido), e sim nos atores fazendo tipos cômicos. Não há dúvida de que Caluan Rodrigues e Lara Herschdorfer possam apresentar atuações marcadas por nuances, porém o filme exige que cada um corresponda a um tique específico: ele retrai o corpo e arregala os olhos diante de qualquer situação, seja medo, surpresa, ou timidez diante da mulher amada; já ela, definida como “agressiva”, precisa explodir em toda cena, falando sem parar, gesticulando a cada instante, gritando a esmo. As cenas de briga entre os cinco colegas se convertem numa histeria generalizada, quando todas as vozes ficam mais altas, mais agudas, sem busca por equilíbrio ou variações.

O projeto aparenta ter como horizonte as comédias populares da Globo Filmes, no estilo de Chocante (2017) ou Meu Passado me Condena (2013), por exemplo. Por mais que estes projetos também sejam frequentemente apontados pela crítica como superficiais ou apelativos, eles apresentam um zelo de produção notável quanto às cores, ao som, à trilha sonora e ao equilíbrio entre atores. Nem mesmo Paulo Gustavo e Fábio Porchat, dois humoristas histriônicos, gritam o tempo inteiro. Seus personagens, por mais tipificados que sejam, ainda encontram variações emocionais ao longo do percurso. De qualquer modo, o projeto gaúcho possui um alvo bem definido: o público familiar, consumidor das comédias de costumes. No entanto, a produção se ressente de um trabalho estético mais cuidadoso: o som durante as sessões de terapia em grupo está tão comprometido que cabe pensar se realmente valeria a pena inclui-las no corte final; enquanto a iluminação nas cenas internas e no bar onde “Madonna” se apresenta é bastante deficiente. A construção de um ambiente verossímil seria fundamental para o espectador abraçar outras concessões à lógica propostas pela narrativa: o fato de os contratos comprometedores permanecerem no mesmo local, mesmo quando o vilão está ciente do perigo, ou a investigação criminosa não encontrar os evidentes culpados pelos planos finais. Quando nem os cenários, nem as ações soam plausíveis, o espectador acaba expulso da narrativa, observando de longe uma dinâmica de difícil identificação.

Outros aspectos merecem atenção. É inaceitável em 2020 reincidir em piadas LGBTfóbicas: cenas ridicularizando travestis ou brincando com o homem que “vai virar mulherzinha” na prisão constituem ofensas à percepção da homossexualidade, da transexualidade e da feminilidade. A opção pela sedução como forma de obter informações privilegiadas, utilizada em mais de uma cena de Trapaça, também incorre em outros preconceitos, e não é colocando duas mulheres de biquíni realizando assaltos que se sugere empoderamento – como bem lembra o personagem de Aldo d’Ibanos, as personagens de Spring Breakers tinham bons motivos para estarem usando trajes de praia. Os códigos existem para ser ressignificados, subvertidos, explorados de acordo com o contexto em que se inserem. Por isso, mesmo as figuras cristalizadas do grande vilão que ri alto com o charuto na mão, ou dos amigos excessivamente ingênuos, poderiam ser inseridas nos nossos tempos. O que significa discutir uma cooperativa, ou presenciar a falência de um setor inteiro, no Brasil de 2020? A comédia nunca foi dissociada da sociedade, muito pelo contrário: o melhor humor é aquele capaz de rir seja das classes opressoras, seja de nossas próprias falhas de maneira crítica. Falta olhar a este cenário que, no fundo, aborda temas graves (pauperização, exploração trabalhista) com um mínimo de compreensão do que estes temas representam na contemporaneidade.

Filme visto online no 48º Festival Internacional de Cinema de Gramado, em setembro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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Bruno Carmelo
3
Lorenna Montenegro
5
MÉDIA
4

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