Sinopse
Crítica
O primeiro dos indícios de que Tinnitus busca inspiração na obra do cineasta norte-americano David Lynch é o mergulho da câmera na escuridão enigmática de uma orelha, gesto equivalente ao da entrada do protagonista de Veludo Azul (1986) na dimensão macabra da sua aparentemente pacata cidadezinha. Para corroborar essa associação (que sempre pode ser uma “viagem” da cabeça do crítico ávido por referências), surge a agitação dos gafanhotos que ganha uma magnitude monstruosa com a proximidade da câmera e o desenho sonoro assinado por Fábio Baldo. É muito parecido com o que Lynch faz no seu filme já citado: utilizar os insetos como prenúncio de que algo errado está para acontecer. À medida que a trama do longa-metragem de Gregorio Graziosi avança, essa filiação ao trabalho do realizador considerado herdeiro do surrealismo ganha elementos, sobretudo no que diz respeito a uma sincronicidade entre a ex-atleta Marina (Joana de Verona) e Teresa (Alli Willow) – aliás, Theresa Banks é o nome de uma coadjuvante importante do universo da série lynchiana Twin Peaks (1990-2017). Coincidência? Fato é que, enquanto a veterana tenta retomar a sua atividade como saltadora ornamental profissional de altíssimo rendimento, a novata aparece como uma espécie de duplo que, pelos cálculos do filme, pode perfeitamente ser lida como desdobramento e/ou fragmentação da esportista.
Tudo começa com um acidente. Marina está se preparando para saltar na companhia de sua colega Luisa (Indira Nascimento). No entanto, um severo zumbido (o tal tinnitus do título) intermitente em seu ouvido provoca uma dissincronia nos movimentos que precisam ser perfeitamente simultâneos para a aprovação do público e dos juízes da modalidade. A partir disso, ela cai em desgraça, precisa parar de competir e se resigna, em sua relação fundamental com a água, ao trabalho como intérprete de sereia num aquário com poucos espectadores. Portanto, a protagonista de Tinnitus é essa mulher abruptamente retirada de seu habitat natural e transformada numa figura assombrada pela patologia que lhe causa frustração. O que o cineasta nos propõe é mesmo um mergulho (com o perdão do trocadilho infame) vertiginoso numa psique fraturada em busca de sustentações concretas. No entanto, Marina não encontra um bote salva-vidas nem na rotina menos glamorosa e de certo modo segura. Tampouco há essa estabilidade na rotina matrimonial com Santos (André Guerreiro), o doutor que tenta encontrar uma saída para seus problemas. Aliás, dentro da proposta desse texto de estabelecer paralelos entre o filme brasileiro e a obra de David Lynch, a cena em que Santos expõe Marina aos colegas médicos se assemelha muito a um dos momentos mais dramáticos de O Homem Elefante (1981).
É positiva a busca de Tinnitus pelos caminhos da indeterminação. Constantemente, a natureza concreta dos fatos é colocada em xeque, pois os fenômenos e as ações derivam da percepção de uma personagem em crise psíquica. Aproveitando a ótima fotografia assinada por Rui Poças, o cineasta Gregorio Graziosi tenta fazer com que as imagens sejam levemente questionáveis, sobretudo porque resultam de um olhar contaminado pela angústia do trauma persistente. No entanto, falta ao filme algo fundamental e abundante na referencial obra de David Lynch: a densidade do suspense. Lynch enxerga na dúvida (pilar do thriller) um componente essencial para desenvolver narrativas em que a realidade, o sonho, a representação e a distorção da verdade convivem e se interpenetram incansavelmente. O filme brasileiro até tenta reproduzir essa ideia da incerteza teimosa sobre o que vai acontecer, para isso investindo em elipses – supressão do tempo com efeito dramático –, no surgimento de figuras e ocasiões mais simbólicas do que claramente práticas, no questionamento sobre as origens e os efeitos do mal que atravessa a protagonista, entre outras estratégias perceptíveis. No entanto, mesmo que tente criar uma atmosfera onírica em convivência com a realidade objetiva, o filme falha na intenção de gerar e manter a inquietação. Falta intensidade nesse jogo cênico bem intencionado e claudicante.
Retomando algo citado no primeiro parágrafo desse texto, em Tinnitus o surgimento desse duplo representado por Teresa tanto nos remete ao lynchiano Cidade dos Sonhos (2001) quanto ao bergmaniano Persona (1966), filmes incontornáveis pelo paradigma da fusão simbólica entre duas personalidades femininas (ou pela demonstração da cisão que sugere as dualidades). Gregorio Graziosi faz uma espécie de colagem de situações indicativas dessa conjuntura poética que poderia revelar melhor certos dados da personalidade de Marina. Porém, esse estranhamento pela presença da novata que usa suas roupas, flerta com seu marido e ocupa o espaço que fora seu na dupla com a amiga de infância serve somente como um distrativo que não fornece chaves para imergirmos na escuridão definidora da crise da protagonista. Em vários instantes desse longa-metragem, as estratégias narrativas de alusão ao onírico soam mais como exercício de estilo do que necessariamente enquanto chaves a um cinema menos determinista e atento à porosidade das experiências humanas. Outro aspecto que remete diretamente à obra de David Lynch é a ode ao artifício como forma de reivindicar a potência da fábula, aqui visto nas lindas imagens subaquáticas de Marina vestida como a mítica sereia que inebria os incautos com seu canto. A dispersão e a falta de uma concisão dramática resultam na aridez emocional de uma trama que tinha tudo para nos engajar nos mistérios, não fossem tantos desperdícios.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Marcelo Müller | 4 |
Celso Sabadin | 5 |
Carlos Helí de Almeida | 6 |
Ticiano Osorio | 3 |
Alysson Oliveira | 4 |
Monica Kanitz | 5 |
MÉDIA | 4.5 |
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