Crítica


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Sinopse

Um comerciante de frutas ocupa parte de uma calçada em Wuhan para vender os seus produtos. Os fiscais da cidade tentam obrigá-lo a se mudar, mas o homem se recusa. Está lançado um impasse legal e administrativo extenso, capaz de refletir as diversas contradições da China contemporânea.

Crítica

É preciso um diretor muito astuto para desenvolver um projeto como Cidade dos Sonhos (2019). Na cidade de Wuhan, na China, um pequeno vendedor de frutas e roupas ocupa parte da calçada pública com seu estande. O empreendimento fere as leis do bairro, em fase de modernização para a criação de uma rua inteira composta por joalherias. Os inspetores da municipalidade são encarregados de remover a banca de Wang Tiancheng, que se recusa ferozmente a partir. Este constitui o único conflito central, do início ao fim do documentário de mais de cem minutos de duração. Chen Weijun demonstra exímio talento de cronista para chamar atenção ao pequeno embate entre as baixas esferas da sociedade e as baixas esferas do poder, apropriando-se do quiproquó para construir uma obra de ambições muito mais amplas. O cineasta foi capaz de enxergar na querela tragicômica o símbolo de uma China em transformação, dentro de um comunismo de mercado repleto de configurações contraditórias. Os fiscais não têm a autoridade de prender Wang e sua família, que tampouco têm condições de irem para qualquer outro lugar. Nasce então a crônica de um impasse.

Esta premissa serve como porta de entrada metonímica a discussões muito mais ambiciosas envolvendo a nação contra o indivíduo, o direito público contra o direito privado. Ambos os lados da equação seriam defensáveis: os agentes públicos cumprem uma lei que não permite ao comerciante ocupar tamanho espaço das vias públicas, além de representar concorrência desleal com os lojistas em frente, pagando aluguel pelos espaços utilizados. Já Wang chefia uma família paupérrima de agricultores vindos de outra região, ganhando seu sustento na mesma rua há mais de uma década. O filme jamais toma partido de um ou de outro, esforçando-se para estar em ambos os lados ao mesmo tempo: enquanto os chefes municipais organizam longas reuniões sobre o “caso Wang”, o protagonista vende suas frutas, esbraveja contra o poder público, agride os fiscais e ameaça se matar em mais de uma oportunidade. A cena com o panfleto contendo lemas do comunismo não está presente por acaso: os preceitos de igualdade de oportunidades e de direito à prosperidade protegem o idoso, enquanto os lemas de modernização e cumprimento da ordem contemplam os pequenos vigias. Qual lei deveria prevalecer sobre as demais? Por meio deste incidente, o cineasta desenha uma ambiciosa provocação em termos ideológicos.

O documentário encontra uma maneira respeitosa de acompanhar o caso. Com uma câmera na mão, trabalhando a partir de luz natural, Weijun segue o conflito dia após dia, sem possuir qualquer controle a respeito do caso à sua frente. Ele se demonstra atento e humilde, dedicando-se à causa ao vivo sem poder imaginar para onde ela o conduziria. O cineasta evita filmar Wang, a esposa com câncer, o filho deficiente e a neta prodígio à distância, como faria um voyeur. Pelo contrário, a imagem está sempre perto dos inúmeros gritos e agressões. Em paralelo, jamais se reforça o sensacionalismo de uma situação escandalosa por si só. A excelente montagem favorece tanto os ataques de raiva do comerciante quanto o rosto calado dos familiares, o olhar de indignação dos passantes, a expressão de impotência dos jovens fiscais. O cinema se coloca à disposição deste embate representativo enquanto revela a capacidade de olhar para além dos protagonistas. Em outras palavras, o filme encontra no processo sua verdadeira finalidade. Esta não é a “história do idoso que venceu o sistema”, nem a “história do sistema que venceu o idoso”, e sim a anedota tragicômica da cidade e do indivíduo devorando um ao outro.

Ao mesmo tempo, o diretor revela uma capacidade ímpar de captar pequenas poesias capazes de atenuar o conflito e favorecer a identificação com os personagens. Os jantares dentro do casebre, quando o pai cobra da filha as notas de matemática; o tempo encontrado para brincar com o cachorro em meio aos problemas da banca; a sopa que esfria pelo caminho quando é levada à esposa doente; ou o filho que dorme dentro de seu trailer, com música ligada para não ser assaltado durante a madrugada, fornecem uma beleza triste. Obviamente, estas pessoas teriam preferido morar em lugares melhores, sem tamanho sofrimento. No entanto, demonstram um orgulho visceral do que construíram ao longo das décadas. O filme não representa estas pessoas enquanto vítimas do sistema carrasco, mas como frutos de um sistema cujo mecanismo ultrapassa seus desejos específicas. Reforça-se a dignidade do trabalhador ambulante, ao passo que os fiscais tentam ajudar o vendedor até demais – seja por piedade à situação do homem doente, seja para resolver o problema de uma vez por todas. Wang é obrigado a atenuar sua raiva, enquanto os fiscais precisam se esforçar para entender as necessidades específicas desta família de doentes, de modo a encontrarem uma possível solução intermediária.

Uma cena se revela tão absurda quanto rica para discutir o papel do cinema neste contexto. Irritado com a presença da equipe, Wang parte para cima da câmera e ameaça quebrá-la. “Abre a câmera! Abre a câmera!”. O sujeito idoso e pouco instruído não fornece qualquer sinal de querer se apoderar de uma possível fita ou cartão de memória. No auge de sua raiva mais instintiva, ele procura pela imagem lá dentro. O comerciante sabe do valor do aparelho e não pretende destrui-lo: ele quer se apoderar apenas da imagem de seu rosto aos gritos. Apesar dos numerosos momentos cômicos, Cidade dos Sonhos oculta um fundo amargo, quando o protagonista percebe subitamente o poder do registro documental. As interações são tão espontâneas e descontroladas que constituem simultaneamente “algo que não se deveria filmar” – o vendedor se humilhando, os fiscais levando tapas na cara, os passantes escandalizados – e algo que se precisa filmar, por se tratar de gente que nunca aparece na televisão, nem no cinema. Esta é uma arte sobre pessoas invisíveis, que jamais conseguem ser escutadas dentro de um sistema opressor. Por isso, comunicam-se aos gritos, como loucos. Wang torna-se um sintoma da sociedade, um efeito colateral do “sonho urbano” (verdadeira tradução do título internacional) de tantos cidadãos rurais. O filme se encerra com sorrisos, mas talvez o espectador tenha dificuldade de saber se todos ganharam ou todos perderam com as soluções encontradas.

Filme visto no 25º É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, em setembro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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