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Sinopse

Junhee é uma escritora famosa que decide viajar a uma parte remota do país para encontrar uma amiga que não via há anos. No caminho, reencontra um cineasta que prometeu adaptar seu livro nos cinemas, mas jamais cumpriu com o trato. Depois de cruzar com uma atriz famosa num parque, Junhee decide fazer o filme por conta própria: basta apenas descobrir como funciona o cinema.

Crítica

“Eu adorei o seu último romance”, dizem pelo menos três personagens à escritora Junhee (Lee Hyeyoung), que agradece a cortesia humildemente. Nunca saberemos o título desta obra, sobre o que versa, nem qual estilo possui. Anônimos reconhecem pela rua uma atriz famosa, Kilsoo (Kim Min-hee), e elogiam os seus trabalhos, dos quais jamais saberemos um título sequer. A atendente de uma livraria afirma ser fã dos poemas de um artista idoso, mas os comentários permanecem na superfície. O conflito principal de O Filme da Escritora (2021) também diz respeito a uma obra invisível: Junhee sonha em fazer seu primeiro filme, embora não tenha uma história, um título, ou o mínimo de conhecimento a respeito da linguagem cinematográfica. Ela reúne um grupo de entusiastas, e quando indagados sobre o tema do projeto prestes a entrar em realização, respondem apenas “Não sei ainda”. Chegada a projeção do média-metragem finalizado, a montagem corta a cena e leva o espectador ao terraço do cinema, onde duas pessoas conversam. O diretor Hong Sang-soo tem demonstrado um fascínio crescente por histórias sobre a representação pela ausência. A Mulher que Fugiu (2020) girava em torno das qualidades de um homem invisível nas imagens, e descrito em terceira pessoa. Aqui, os elementos suprimidos são obras de arte, a respeito das quais se discute em tom genérico. No fundo, ninguém parece ter realmente visto ou lido o trabalho alheio, mas são muito educados para perguntar “De qual trecho você gostou mais?”.

Hong Sang-soo tem explorado sua linguagem de maneira leve. Talvez o motivo pelo qual seus recursos habituais não demonstram sinal de esgotamento, apesar de uma sucessão vertiginosa de exemplares anuais, se encontra na reconfiguração estética do traço autoral. Os planos longos e fixos, a fotografia em preto e branco e o zoom durante as cenas, reenquadrando as conversas, formam elementos de base da gramática do sul-coreano. No entanto, estas peças buscam uma combinação diferente a cada projeto. Desta vez, por exemplo, a introdução de binóculos potentes permite o emprego do zoom de maneira intradiegética, num plano subjetivo — ou seja, como se o personagem estivesse dirigindo a cena e efetuando o zoom por conta própria. O contraste acentuado do preto e branco faz com que duas mulheres discutam os detalhes de uma paisagem imperceptível aos nossos olhos: para o espectador, trata-se de um borrão branco, o que acentua o humor da conversa. A tradução de quatro versos para libras, repetidos inúmeras vezes, possibilita à protagonista recriar apenas a linguagem de sinais, de modo que o espectador saiba exatamente as palavras que está significando em silêncio — o aprendizado serve ao público, que participa da conversa. Já a volta apressada de uma garota (e do enquadramento) para buscar a máscara contra a Covid-19 nos lembra do aspecto de crônica que acompanha o conjunto: o filme retrata este período sem precisar convertê-lo em tema.

As melhores brincadeiras do longa-metragem se encontram na paródia das ferramentas do cinema. Comentando os próprios livros, Junhee confessa: “Fico inflando coisas simples até atingirem um significado”, em clara alusão ao método do diretor. Quando questionada sobre a vontade de realizar a obra audiovisual, ela escuta algumas condições: “Uma história precisa de roteiro”, outra regra desmentida por tantas criações cinematográficas. A premissa confronta a autoria consolidada ao amadorismo, percebido enquanto assinatura de um criador. Hong Sang-soo nunca teve dificuldade em ser reconhecido como autor, seja pelos traços típicos e recorrentes, seja pelo controle artístico total de seus filmes — neste caso específico, ele desempenha as funções de diretor, produtor, produtor executivo, roteirista, diretor de fotografia, montador e compositor da trilha sonora. É interessante que um artista tão experiente seja fascinado pela figura de amadores, caso de Junhee e Gyeongwoo. Isso lhe permite sugerir que sua linguagem de aparência simples seria, na verdade, uma associação ao estilo de criação destes artistas iniciantes. O naturalismo cede espaço ao realismo fantástico, aos inúmeros encontros do destino, cada vez mais improváveis (algo ressaltado em Encontros, 2021), até se encerrarem de maneira cíclica: os personagens partem de uma livraria até no fim do dia, por acaso, se encontrarem neste espaço novamente. O aspecto de faz de conta destes episódios corriqueiros se traduz na aparência próxima da fantasia.

O Filme da Escritora representa uma nova ciranda de afetos que recusa o amor romântico enquanto ponto de referência. O roteiro é composto por artistas que admiram uns aos outros e desejam trabalhar juntos — uma manifestação palpável para as figuras presas em suas casas durante mais de dois anos. Os atores recebem protagonistas generosos, porque falhos, atrapalhados, propensos ao exagero. Kim Min-hee sustenta um corpo desconstruído e jovem, próximo da indiferença, ao passo que as colegas satirizam a neurosa urbana e o ganho de peso devido ao isolamento social. Ninguém sabe se mantém a máscara ou a retira na hora de falar, ou então se a deixa pendurada no pescoço — algo de fácil identificação no contexto brasileiro. Em oposição às construções psicológicas e intelectualizadas, quando personagens são determinados por traumas na infância e objetivos para o futuro, o cineasta imagina figuras que ocupam apenas o presente, num estado louvável de disposição ao outro e abertura ao acaso. Eles circulam por poucos espaços, vestem o mesmo figurino do início ao fim, e se dedicam a falas banais, despreocupadas (vide a tirada hilária sobre o uso da palavra “desperdício”). Caso filmasse esta exata premissa, com os mesmos encontros e diálogos, dentro de uma estrutura acadêmica de planos e contraplanos, close-ups e stablishing shots, geraria um resultado desinteressante. O filme atinge seu vigor precisamente por enxergar a banalidade através de uma linguagem tão sofisticada. 

Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2022.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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