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Sinopse

Enquanto o marido está em viagem de negócios, Gam-hee conhece três mulheres nos arredores de Seul. Ela primeiro visita dois amigos íntimos em suas casas; o terceiro, um conhecido mais velho, ela encontra por acaso em um cinema independente.

Crítica

“A mulher que fugiu”, mencionada no título, corresponde à mãe da vizinha da amiga da protagonista. Ela não possui nome, nem imagem. Esta mulher é citada num diálogo, dentro de uma anedota passageira. A vizinha da amiga da protagonista, por sua vez, é vista apenas através de uma câmera de segurança, em imagem borrada, fumando um cigarro na rua. A amiga da protagonista possui um apartamento luxuoso, que parece decorado por um designer profissional, conforme descobrimos pelos diálogos. No entanto, não vemos este apartamento luxuoso: as duas amigas se encontram num canto limitado do imóvel, e observam um ponto distante do nosso olhar quando comentam a beleza da decoração. Já a protagonista Gam-hee (Kim Min-hee) insiste ter um marido de quem nunca se separou um dia sequer, em cinco anos de relacionamento. No entanto, jamais vemos este homem de quem ela é, aparentemente, inseparável.

Em A Mulher que Fugiu (2020), o diretor Hong Sang-soo efetua uma interessante brincadeira com a invisibilidade, ou talvez seja melhor dizer, com o caráter representativo da imagem. O principal interesse de cada conversa entre Gam-hee e suas amigas se encontra fora do quadro, em algum lugar distante. O cineasta retrata elementos ausentes ou imaginados, seja literalmente ao lado do enquadramento, ou num espaço apenas citado (o amante do apartamento de cima, o gato-ladrão que não rouba ninguém, a deliciosa carne que não vemos no prato, o palestrante tagarela que nunca vemos falar, o filme-dentro-do-filme que permanece oculto ao espectador). O filme se conta em voz indireta, não para sugerir fatos espetaculares que a produção não seria capaz de criar, e sim para funcionar como estímulo à nossa imaginação. Os planos simplíssimos, com luz natural, enquadramentos fixos e personagens sentados à mesa carregam uma complexidade muito maior devido ao contraste permanente entre o representado e o sugerido.

Além disso, Sang-soo toma a liberdade de fazer com que suas imagens se transformem graças à duração. Uma briga convencional no corredor de um prédio entre uma jovem e seu pretendente amoroso adquire novos contornos quando sabemos que Gam-hee observava tudo pelas câmeras. Uma sessão de cinema quase vazia ganha significado distinto quando descobrimos, mais tarde, quem trabalhava ali. A história engraçada da menina na janela muda de tom ao sabermos, no final do diálogo, que a mãe dela desapareceu. A aparente imobilidade das cenas carrega uma dinâmica surpreendente, que solicita nossa constante atenção. A cada vez que retoma seus filmes conversados e cotidianos, o cineasta busca novos elementos de linguagem para trabalhar a partir dos mesmos planos fixos e posados. Ele parece buscar novas maneiras de explorar incessantemente o mesmo objeto de estudo, como um pesquisador obstinado. A repetição conceitual de Sang-soo se assemelha a uma obsessão intelectual: quantos efeitos estéticos distintos se pode extrair a partir da mesma configuração básica de direção e roteiro?

O zoom se tornou uma das ferramentas mais expressivas dos últimos filmes do diretor, encontrando aqui uma aplicação interessantíssima. As aproximações agressivas dentro de um mesmo enquadramento servem para decupar no interior do plano-sequência, direcionando o olhar do espectador sem cortes nem variações de ângulo. Os zooms alternados entre os rostos de Gam-hee e das amigas aludem à lógica do plano e contraplano sem de fato utilizar estes cortes, produzindo um curioso efeito cômico. O recurso também permite imprimir agilidade e preciosismo dentro de cenas banais, como se o caráter ordinário das conversas e cenários se contrastasse com a linguagem chamando atenção a si própria. O zoom não se resume portanto a uma escolha estética, tornando-se uma ferramenta narrativa essencial: a aproximação em um gato torna-se fundamental para criar humor em uma cena; o amplo zoom em direção de uma montanha faz com que a câmera entre na janela de outra personagem – a câmera literalmente viaja pelo espaço, sem complexos efeitos de grua ou drones.

Ao mesmo tempo, o cineasta refina seu cinema de classe média com vocação para as pequenas conversas sobre a predileção por carne ou o rosto inchado após uma noite de bebedeira. Ironicamente, A Mulher que Fugiu – título que faz referência a um mistério, um conflito importante e um fato excepcional – transcorre sem mistérios nem conflitos dignos de nome, em ritmo cotidiano. As produções clássicas privilegiariam um momento de virada na vida dos personagens, por possuírem maior possibilidade de desenvolvimento emocional. Sang-soo prefere os dias como quaisquer outros, de tempos mortos, céus nublados, jantares nem bons nem ruins. É fácil se identificar com as protagonistas desse filme feminino, e reconhecer esta visão tragicômica da arte – a sala de cinema vazia, a performance artística nunca desempenhada de fato. O humor se sobressai em cada cena por sublinhar elementos que, na maioria dos filmes, não virariam cinema. Esta é uma experiência de generosa humanidade e empatia.

Filme visto no 70º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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