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Sinopse

Tony Lip, um dos maiores fanfarrões de Nova York, precisa de trabalho após sua discoteca, a Copacabana, fechar as portas. Ele conhece um um pianista e quer que Lip faça uma turnê com ele. Enquanto os dois se chocam no início, um vínculo finalmente cresce à medida que eles viajam.

Crítica

À primeira vista, é fácil estabelecer paralelos entre Green Book: O Guia com o oscarizado Conduzindo Miss Daisy (1989), que há exatos 30 anos discutiu racismo e intolerância ao colocar num mesmo carro duas figuras de personalidades – e raças – tão distintas que, inevitavelmente, acabavam se completando. Afinal, essa simples definição serve tanto para um filme quanto ao outro. Mas estas três décadas que os separam não se passaram em vão, e a mudança dos tempos está bem refletida no projeto mais recente. Agora, não se discute apenas preconceito: as diferenças entre os protagonistas vão além do que é possível depreender pelas superfícies, aprofundando-se em suas vidas e realizações. São almas em conflito que passam a se debater, motivadas por um convívio um tanto forçado, mas que, aos poucos, vão encontrando seus próprios espaços. E o fato de que tal existência enfim se completa a partir da relação com o próximo é inegável e, ao mesmo tempo, transformador. Algo que vai além dos limites da ficção, estimulando a reflexão entre os mais atentos e sensíveis.

Tony Vallelonga (Viggo Mortensen, mostrando-se cada vez mais um ator completo, deixando de lado qualquer vestígio da persona heroica que tantas vezes encarnou para dar vida a um legítimo carcamano, bruto, porém de bom coração) ganha a vida como segurança e faz-tudo em boates frequentadas por todo o tipo de gente na Nova York do início dos anos 1960. Quando se vê de uma hora para outra sem emprego graças a uma questão burocrática, o espírito familiar se faz mais forte, a ponto de aceitar qualquer oferta remunerada que surja em seu caminho: e entre elas, nenhuma soa melhor do que a de servir como motorista para o pianista Don Shirley (Mahershala Ali, exalando força e sutileza, cujas camadas vão aos poucos se revelando, indo de um domínio de cena impressionante que, lentamente, vai sendo substituído por uma fragilidade desconcertante) durante uma excursão pelo sul do país. Serão algumas semanas, somente os dois, juntos na estrada. Parece ser simples, um dinheiro fácil – e bem pago. Mas há mais ali. Algo que aquele que está com apenas uma coisa em mente – o sustento da esposa e filhos – nem chega a se dar conta de imediato. Mas que ficará evidente com o passar dos dias.

Shirley é negro. Vallelonga, como o nome já aponta, é ítalo-americano. Justamente por isso, esse nem faz ideia do que é ser uma pessoa de cor. Muito menos nos estados do sul dos Estados Unidos, notoriamente conhecidos por serem mais conservadores e resistentes às mudanças. Peter Farrelly, que até então havia dirigido – sempre em parceria com o irmão, Bobby – comédias escrachadas como Debi & Lóide: Dois Idiotas em Apuros (1994) e Quem Vai Ficar com Mary? (1989), dá uma guinada de 180º em sua carreira ao investir em um discurso mais contundente e menos debochado. No entanto, ninguém muda da água para o vinho sem alguns tropeços. E Green Book não está isento deles. Por exemplo, em uma das cenas iniciais, Vallelonga, ao acordar, encontra dois homens negros – encanadores – com sua esposa, na cozinha, fazendo reparos por ela solicitados. Está calor, e lhes é oferecido água. Assim que ambos vão embora, o ‘homem da casa’, sem aviso ou protesto, vai até a pia e, com cuidado, pega os copos usados pela dupla e os joga no lixo. Ele é discreto, porém incisivo. E os parentes estão logo ali, ao seu lado, para não apenas aprovar, mas também incentivar o desprezo. Mas uma vez fora do seu ambiente, tais reações persistiriam? É isso que ele mesmo terá que descobrir.

Há muitas passagens cujos recados não são nada sutis durante o desenrolar da trama de Green Book: O Guia. O próprio título do filme, para se ter uma ideia, faz referência a um manual que orienta como negros devem se comportar em regiões onde a tal ‘supremacia branca’ seguia em vigência. Nick, que no começo vê a questão como um exagero, aos poucos vai se dando conta da real dimensão – e o quão entranhada o debate se faz no coração do país. Se a recusa de ser atendido em uma loja de roupas parece ser meramente pontual, o caso ganha novo contexto quando nem mesmo a arte parece ser válida: Don Shirley é bom o suficiente para ser chamado para animar festas e jantares dos mais disputados círculos destas sociedades, mas não o bastante para que as mesmas permitam que ele jante – ou mesmo use o banheiro – ao lado deles. Assim, a jornada se faz por dois caminhos: o do homem branco que se vê obrigado a abandonar sua bolha de segurança, e a do artista negro constantemente confrontado com uma realidade que nem todo o seu talento é capaz de mudar. Ao menos não de forma imediata.

Por outro lado, enquanto Vallelonga vai se abrindo para as mazelas de uma nação profundamente dividida, há o contraponto vivido por Shirley. Isolado em si mesmo, se cercou de todas as garantias possíveis para se preservar da crua e dura verdade das ruas. Na maior parte do tempo, portanto, leva uma vida em que a negritude de sua pele parece não fazer diferença. Mas, agora, ele também está em um ambiente que lhe é estranho. É por isso que aquele sob suas ordens acaba por adquirir um novo status: o de segurança pessoal. A parceria que se estabelece entre eles lhe permitirá ir, aos poucos, derrubando essas muralhas que tanto o protegem quanto o prendem. Pois, mais do que músico, é alguém como qualquer outro, dotado de instintos e necessidades. E quando se leva uma existência em negação, válvulas de escape se fazem urgentes. Mas como ser quem de fato é, quando o que mais faz falta é a confiança não apenas em si, mas também naquele ao seu lado?

Registro da maturidade artística de Farrelly, que se por um lado não deixou de ser por completo o cineasta que sempre foi, ao menos demonstra empenho em evoluir enquanto realizador, Green Book: O Guia também é um atestado do que de melhor seus intérpretes – Viggo Mortensen e Mahershala Ali – são capazes de fazer. E por mais que a história esteja ambientada há mais de cinquenta anos, é tão triste quanto provocador perceber o quão atual a mesma se faz quando vista sob os olhos de hoje. Excitante e envolvente, é um filme que não desperdiça momentos de leveza – como a troca de cartas entre Vallelonga e a esposa, processo marcado pela interferência de Shirley – com outros de forte simbologia – como quando a situação se inverte na ida dos dois ao bar frequentado apenas por negros, no qual nenhum deles, independente das suas raças, irá se sentir à vontade de imediato, mas cada um descobrirá como se fazer presente. Justamente por esse equilíbrio, jogando tanto para a plateia como para o autoral, que esta se mostra uma obra singular, dona de um discurso feito para repercutir além do alcance de sua narrativa. Efeito que poucos conseguem, e por isso, não deve nunca ser subestimado.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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