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Sinopse

Após perder o emprego e o marido em questão de meses, Fern reúne seus pertences numa van e parte rumo à exploração de um novo futuro possível. Fora da lógica dominante na sociedade, ela se transforma numa nômade.

Crítica

Antes mesmo da primeira imagem ser exibida na tela, um letreiro sucinto dá o tom do que o espectador irá encontrar a seguir. Após permanecer por mais de oitenta anos em atividade, uma fábrica no interior dos Estados Unidos se viu obrigada a fechar as portas, devido à crise que se abateu sobre o país no início dos século XXI, e por isso dispensou dezenas de colaboradores. Poucos anos depois, a pequena cidade de Empire, onde essa empresa se encontrava, nem mais CEP possuía. Para entender o quão profunda e reveladora é a informação de que o código postal de determinado endereço foi desativado, é necessária uma compreensão não apenas a respeito das transformações sociais às quais todos nesse planeta, estejam onde estiverem, estão sujeitos a qualquer momento, seja após diversos alertas ou mesmo do modo mais inesperado possível. Exatamente o que aconteceu com Fern, a protagonista de Nomadland. Mais do que elencar eventos e alinhar situações, tem-se aqui a preocupação de expor uma situação real e urgente, distante do alardeado sonho americano de décadas atrás. E assim o faz, não só com imensa propriedade, mas a partir de uma sensibilidade que se confirma imprescindível para a força e o alcance do seu discurso.

A partir de uma construção assumidamente delicada, repleta de sutilezas e atenção aos detalhes, sem grandes diálogos ou explicações, Frances McDormand faz de Fern talvez a mais complexa, e ainda assim menos gratuita, de todas as personagens que defendeu ao longo de uma brilhante carreira de quase quarenta anos. É fácil entender o que lhe aconteceu. Demitida do trabalho que a ocupou ao longo da vida, em seguida viu o marido penar por meses em uma cama de hospital até dar adeus. Agora, sozinha, e desprovida das reservas financeiras que eventualmente possa ter acumulado, tem pouco que possa chamar de seu. Dentre estas posses, uma é especial: a van que adaptou a parte interna até transformá-la em algo próximo de um lar. É ali onde mora a partir de agora, portanto. Ao ser questionada se havia ficado sem teto, calmamente responde: “I’m not homeless, I’m houseless”. Ou seja, não é que tenha perdido onde morar, apenas deixou de ter uma casa. E se para a maioria das pessoas ambas expressões podem soar como sinônimos, para ela são duas condições bem distintas.

Durante as quase duas horas que compõem Nomadland, há muito pouco a respeito de uma trama mais tradicional, com início, meio e fim, mas bastante a ser percebido sobre as intenções que motivaram a realização desse projeto e o debate que uma obra como essa, ainda mais diante da imensa repercussão alcançada, se esforça em proporcionar. Fern segue pela estrada, pulando de um emprego temporário para outro, passando pela turbulência de final do ano nos armazéns da Amazon como empacotadora ou servindo como guia em um resort no meio do nada durante as férias, sem desprezar qualquer oportunidade que lhe seja oferecida, até mesmo como garçonete em uma lanchonete à beira de um caminho qualquer. O que lhe move é a necessidade de se manter ocupada e, mais do que isso, estabelecer conexões reais com as pessoas em situações similares com quem vai cruzando em sua jornada. Da senhora que soube que o câncer que possui é irreversível e que, portanto, poucos meses lhe restam, e por isso deseja retornar ao Alasca onde guarda memórias de tempos atrás, às comunidades de transeuntes – ou nômades, como escolheram se denominar – que volta e meia se reúnem em busca de novas experiências e compartilhamento de histórias, há tanto para ser aprendido que o pouco que pensava ser capaz de ensinar inevitavelmente acaba ganhando um lugar coadjuvante em suas prioridades.

Entre esses está Dave (David Strathairn, um dos poucos atores profissionais em todo o elenco, além da própria Frances), que há muito perdeu contato com o filho e segue, assim como ela, sozinho, sem rumo e nem direção. Entre os dois surge uma simpatia natural, de pessoas maduras, que já passaram por poucas e boas, mas seguem dispostos a irem em busca de mais. Só que há uma questão fundamental no centro de Nomadland: o quanto ela está nesse estado por ser a única condição que lhe resta ou até que ponto há um fator de escolha envolvido? Quando o cunhado, durante uma visita à irmã, comenta que ela teria optado por viver daquele modo, sua reação é de ironia e estranheza. Porém, ao ser questionada a respeito da antiga casa onde morava, responde que era um lugar simples e ordinário. Mas, ao pensar um pouco melhor, afirma que, de fato, se tratava de uma residência especial, mas não pelo tamanho dos cômodos ou pela extensão do jardim, mas por se encontrar no final da rua, e depois dela não haver nada por vários quilômetros, até as montanhas no fim do horizonte. É essa amplitude que tanto preza. É liberdade que busca.

Numa sociedade cuja finalidade parece cada vez mais reforçar a necessidade de consumo e acúmulo das coisas, esse movimento de desprendimento e liberação soa tão revolucionário quanto inadequado. Um olhar que é apurado pela tomada de posição da diretora Chloe Zhao, ela própria uma estrangeira na América, mas também parte desse todo. Assim, consegue o distanciamento necessário para analisar essas ranhuras, ao mesmo tempo em que se entende como parte do problema. Tanto é que, também por isso, uma pessoa como Fern precisa se esforçar tanto – lutando contra o frio e o calor, não tendo onde estacionar e ansiando por um pouco de segurança – para garantir o mínimo, aquilo a que todos deveriam ser direito sem tanto alarde: um lugar no mundo. Nomadland, portanto, parte do menor dos microcosmos – o exemplo de um cidadão em particular – para traçar um painel tão amplo quanto universal. Independente se no meio de uma luta pela sobrevivência ou por simplesmente não conseguir identificar outra forma de garantir sua individualidade, Fern e todos os que se encontram enfrentando os mesmos dilemas deixam claro que, entre partir ou ficar, mais importante ainda é se encontrar. Algo que parece simples, mas que pode fazer toda a diferença do mundo.

 

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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