Crítica


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Sinopse

Quatro pessoas chegam a uma ilha remota em busca de um cadáver. Os locais se recusam a devolver o corpo, pois entendem que ele foi um presente do lago Titicaca.

Crítica

Existem muitos filmes meramente informativos, diante dos quais não somos instigados a completar lacunas e ler nas entrelinhas, pois plenamente abastecidos de informações acerca de personagens, do tempo e espaço. Definitivamente, não é o caso de Sirena, longa-metragem boliviano dirigido por Carlos Piñeiro. Desde os primeiros planos, sobressai a vontade de privilegiar a atmosfera, de estabelecer um trajeto bem mais evocativo do que necessariamente elucidativo. Quatro homens transitam de barco a motor pelo mítico lago Titicaca. São apresentados em fragmentos. A montagem sucede vários plano-detalhe, empenhada em ressaltar a intensidade de mínimos gestos, tais como o cerrar do punho, o contato dos dedos com a água, os olhares um tanto enigmáticos que parecem fitar o horizonte desconhecido. A bela fotografia em preto em branco a cargo de Marcelo Villegas contribui de modo essencial para a idealização de um clima de indeterminação. As composições do quadro, a profundidade de campo, os contrastes, tudo isso aponta ao desejo de conjuração.

Outro dado relevante de Sirena, ao ponto de impor-se como personagem não carnal, é a geografia da ilha na qual a trama se desenrola em sua maior parte. Novamente detida nos detalhes, especialmente nos pés em contato com o solo irregular e pedregoso, a câmera segue orientando o nosso olhar ao micro, àquilo que certamente passaria despercebido se tudo fosse enxergado prioritariamente por meio de planos abertos. E mesmo quando estes vêm, não sobressai uma eventual noção contextual, mas a geração de outra instância da tentativa de entender o meio como dotado de uma natureza notável e pulsante. Demora-se bastante tempo até que tenhamos algumas informações a respeito da intenção por trás dessa caminhada semelhante a uma peregrinação de cunho religioso, haja vista a dificuldade para vencer o terreno, algo que carrega contornos de penitência. Curiosamente, esse laconismo é bastante instigante, principalmente até que saibamos da existência de um cadáver a ser resgatado. Depois, há oscilações consideráveis de intensidade na expressividade da busca.

Os homens da cidade chegam ao cume para resgatar o cadáver do amigo desaparecido. O povo aymara reivindica a posse do inanimado, baseando-se na crença de que o sujeito sem vida lhes foi presenteado pelo lago. Carlos Piñeiro se mantém fiel às minúcias. Obviamente, apresenta as tensões decorrentes da disposição dos nativos por frustrar os planos dos forasteiros, mas o faz somente como ignição a pequenas deambulações individuais, em meio às quais os forasteiros contemplam novas dificuldades, inércias e possivelmente intensificam itinerários particulares. Sirena, no entanto, evita todo e qualquer didatismo, não sublinhando transformações, epifanias, aprendizados, de certa maneira subvertendo as lógicas comuns às jornadas. Em vez de mostrar gente aprendendo lições ao deslocar-se entre pontos distintos, acumulando experiências na viagem, o realizador elege o movimento como protagonista, instaurando o caráter imperturbável do meio milenar. Esse périplo dos homens possui circularidade sintomática. O padrão cíclico impõe uma impotência.

Até pela semelhança entre os planos iniciais e os finais, fica evidente a mensagem da morte talvez como um recomeço. Os parceiros de viagem são distinguidos por suas atribuições, exceção feita ao guia que, não por acaso, pertence ao povo indígena. No entanto, Carlos Piñeiro, fiel ao propósito de indeterminar o quanto possível, não se permite uma sinalização frontal das colocações profissionais dentro de perspectivas históricas/sociais. Pode-se extrair algo do policial frequentemente atrasado, visto apartado dos demais nas longas caminhadas morro acima, e posteriormente “ludibriado” por nativos que compram sua aquiescência/condescendência com álcool. Porém, nem esse aspecto ganha tanta reverberação, se assemelhando a uma nota de rodapé provocativa. Sirena elege a repetição como elemento central dessa trajetória de margens etéreas, correndo o risco (aparentemente bem calculado) de incorrer numa fadiga. A despeito desse efeito colateral, é louvável que se mantenha fiel à tentativa de fazer do cinema uma evocação.

 

Filme visto online no 11º Festival Internacional Pachamama – Cinema de Fronteira, em maio de 2021.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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