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Sinopse

Ao tentar impedir a destruição do Iraque, o diplomata José Mauricio Bustani, primeiro diretor geral da OPAQ (Organização para a Proibição de Armas Químicas), foi demitido por pressão dos norte-americanos.

Crítica

O começo de Sinfonia de um Homem Comum é enganoso. Seus primeiros minutos sugerem algo pequeno e íntimo, sobretudo a julgar pelo interesse nos mínimos (mas indicativos) gestos de um homem de orquestra. A indignação por conta do piano desafinado resume a personalidade desse protagonista, o diplomata aposentado José Mauricio Bustani. Perfeccionista, ele é alguém que reza pela cartilha do correto, daquilo que melhor serve à harmonia coletiva. Rapidamente, o cineasta José Joffily se coloca como personagem ao anunciar que Bustani é seu "amigo de longa data", assim evitando qualquer noção de distanciamento. E a ideia enganosa de intimidade é enfatizada por essa informação do vínculo, estratégia frequente nos documentários biográficos sobre pessoas caras ao realizador. Um filme de camaradas, então? Porém, sem demorar-se nessa dinâmica, Joffily vai abrindo o seu leque de abrangência, inesperadamente partindo de Bustani para fazer um filme-denúncia. Uma peça contundente sobre o comportamento dos Estados Unidos como nação-gângster disposta a quebrar protocolos, violar regras, torcer preceitos éticos e pisotear a soberania de outras nações em função da manutenção de sua posição imperialista. Assim, Joffily nos seduz com a possibilidade convidativa do painel humano, uma performance de câmara – aqui mantemos os vínculos semânticos com a música –, e nos oferece uma sinfonia de ardis políticos.

Com o eficiente despojamento característico dos realizadores experientes, José Joffily entra em cena sem chamar excessivamente a atenção. Ele está ali constantemente, flagrado pela câmera atenta à José Mauricio Bustani, denunciado por si próprio como questionador de testemunhas importantes dos bastidores nefastos da História. No entanto, Joffily nunca reivindica o papel de personagem ativo ou de alguém cujo poder de interferência merece palmas. Podemos dizer que o cineasta exerce uma autoridade silenciosa, ou seja, é uma presença que previne sobre a existência de uma entidade manipuladora (no caso, ele). Ali está alguém com uma perspectiva naturalmente parcial. E, diga-se de passagem, rica justamente por isso. A influência do cineasta se reflete nas tantas falas desarmadas de José Mauricio Bustani sobre um dos períodos mais turbulentos de sua vida, mas também nas cenas com o ex-presidente do Brasil Fernando Henrique Cardoso e com o atual comandante da nação, Luiz Inácio Lula da Silva. O primeiro aparece constrangido, inclusive ao sair pela tangente quando questionado sobre os motivos que o levaram a fazer o jogo escuso dos Estados Unidos numa crise internacional. O segundo é encarado como um estadista atento à soberania brasileira, algo posteriormente corroborado pela história do enquadre do Primeiro Ministro britânico. Os olhares sobre eles são diferentes.

Pensando especificamente sobre José Mauricio Bustani, trata-se de um personagem fascinante. É alguém que provavelmente inspiraria cineastas como Clint Eastwood e John Ford, pois um homem disposto a batalhas que lhes desfavorecem pessoalmente em prol do bem comum, da ordem da comunidade. Pode-se praticamente apostar, sem medo de perder, que esses valores calariam fundo nas convicções dos dois cineastas norte-americanos citados. Curiosamente, ambos cidadãos de pensamentos conservadores que frequentemente retificaram com seus filmes absolutamente humanistas a máxima de que o humano é um animal contraditório. Voltando ao ótimo Sinfonia de um Homem Comum. Sem alardes, ele costura indícios, depoimentos e outros dispositivos para sustentar a versão de José Mauricio Bustani sobre sua destituição da OPAQ (Organização para a Proibição de Armas Químicas), organização sediada em Haia, nos Países Baixos, que entrou em rota de colisão com a nação mais colérica e poderosa dos tempos modernos. Ciente de que a missão da entidade por ele chefiada era garantir protocolos e adesões internacionais a fim de evitar a disseminação de armas de destruição massiva, o brasileiro convidou o Iraque para engrossar a atividade. Caso inspetores provassem que no país médio-oriental não havia perigos, como os EUA teriam desculpas para invadi-lo?

Sinfonia de um Homem Comum traz à tona a perseguição a uma personalidade brasileira de relevância global e, ao mesmo tempo, observa os Estados Unidos como quem desenha o perfil de um psicopata metódico. José Mauricio Bustani menciona espionagens, chantagens, ameaças e demais estratégias estadunidenses para destitui-lo ou, ao menos, para colocar em xeque a sua imagem pública de diplomata idôneo, competente e obstinado. Na construção desse painel alarmante (embora não necessariamente surpreendente), José Joffily ainda conta com as palavras valiosas de ex-funcionários dos altos escalões da administração George W. Bush – do envergonhado porta-voz da presidência na ocasião ao chefe tático que afirma veementemente ter defendido interesses econômicos vendidos à população como táticas para exterminar o mal. O trânsito orgânico entre o micro (o protagonista) e o macro (a carranca geopolítica) sugere a ideia do potencial apocalíptico das decisões de gabinete, atitudes que podem mudar (ou acabar com) inúmeras vidas ao mesmo tempo. Desse jeito, o documentário demonstra uma profunda consciência das escalas, do quanto o apertar de um botão ou uma simples assinatura podem se provocar uma onda de violência e sofrimento. Joffily acena com uma apresentação intimista e nos presenteia com uma sinfonia de verdades duras sobre quem manda no mundo.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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