Crítica


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Sinopse

Doug Rawlins é um famoso blogueiro cristão. Convidado a uma conferência no Egito, ele proclama sua fé em Deus em rede nacional, despertando a ira dos muçulmanos. Poucas horas depois, é sequestrado e torturado por homens persas. Enquanto isso, sua esposa, Liz, viaja ao Irã para tentar resgatar o marido.

Crítica

Contrariamente à ideia popular de que todos os artistas se filiam à esquerda e de que o cinema é tomado por progressistas, vale lembrar a presença crescente de cineastas de direita e extrema-direita. O Brasil possui novos autores orgulhosamente filiados aos conceitos de Olavo de Carvalho, enquanto os Estados Unidos possuem Dinesh D’Souza, um dos mais influentes artistas de extrema-direita no país. Autor de inúmeros best-sellers sobre os “perigos do socialismo e do comunismo”, desempenha a função de comentarista político de programas conservadores da televisão. Além disso, dirigiu o documentário de direita de maior bilheteria mundial: 2016: Obama’s America (2012), filme repleto de teorias da conspiração a respeito das origens de Barack Obama, repetindo a dose em Hillary’s America (2016), em oposição a Hillary Clinton, e Trump Card (2020), uma defesa da gestão Donald Trump. Este homem evangélico constitui o principal produtor de Sequestro Internacional (2019), junto da esposa Debbie D’Souza, integrante da associação Women for Trump. O casal convidou Cyrus Nowrasteh, diretor do drama bíblico O Jovem Messias (2016), para comandar esta história batizada originalmente de “Infiel”.

Deixando claro: artistas de direita possuem o mesmo direito de se expressarem cinematograficamente que quaisquer outros, visto que não existe arte “objetiva” ou “imparcial”. No entanto, é necessário chamar a atenção ao fato de que o cinema de viés explicitamente político sofre aparelhamento de ambos os lados: a abordagem grosseira de Michael Moore, ferrenho defensor dos democratas, encontra seu inverso proporcional em D’Souza. Estas obras e autores integram uma ferrenha disputa de narrativas: ao invés de oferecerem uma reflexão aberta, preferem dizer ao espectador o que pensar, apontando o lado certo e o lado errado da equação, segundo seus pontos de vista. Assim como no Brasil e em outros países governados pela extrema-direita (Ucrânia, Hungria, Filipinas etc.), nota-se o esforço em reescrever a História, apagando fatos importantes ou subvertendo o peso destes – no caso brasileiro, a tentativa de minimizar os atos da ditadura militar, por exemplo. Nesta ficção, o discurso reescrito possui natureza religiosa: os autores sustentam a tese de que cristãos são os verdadeiros oprimidos por suas crenças mundo afora, convertendo-se em alvos de muçulmanos radicais e odiosos. A premissa desenha um elogio ao martírio: um blogueiro cristão (Jim Caviezel) é sequestrado pelo Hezbollah após sugerir na televisão egípcia que Jesus é Deus.

Caviezel já havia interpretado Jesus (em A Paixão de Cristo, 2004) e o evangelista Lucas (em Paulo, Apóstolo de Cristo, 2018), encarnando agora outro personagem torturado em nome da fé em Deus. Seu personagem, Doug Rawlins, constitui um pai de família conservador, preservando a crença em Cristo após um grave acidente que lhe tirou o filho pequeno. Nas mãos dos iranianos, sejam eles políticos corruptos, carcereiros violentos ou juízes vendidos ao sistema, sofre um calvário comparável àquele das figuras bíblicas. Apesar das sucessivas torturas, jamais renega sua fé. Este sujeito carrega uma idealização impensável dentro do cinema naturalista: ele jamais hesita em suas convicções; declara a disposição de ser fuzilado em nome da religião; vence três homens muito mais fortes no soco, desarmando em seguida um agente treinado para a nítida excitação da esposa. Podendo fugir do ataque inimigo, o blogueiro corre rumo ao principal adversário na intenção de perdoá-lo antes da morte. O protagonista ama ao próximo como si mesmo; oferece a outra face ao adversário; acredita que a fé em Cristo o salvará de qualquer perigo, e estima que o todo-poderoso não oferece uma cruz maior do que as pessoas possam carregar. Ainda que vista trajes de cidadão comum, o ator representa mais uma figura jesuítica.

O embate entre cristianismo e islamismo, ou entre Ocidente e Oriente, poderia resultar num painel mais propenso a reflexões. Ora, o roteiro faz questão de revelar com antecedência, apenas ao espectador, o mau-caráter de um personagem que todos estimavam gentil – trata-se de um homem persa, claro -, enquanto retrata Egito, Líbano e Irã como países caóticos, pouco civilizados e desprovidos de leis. Quando a corajosa e ingênua Liz Rawlins (Claudia Karvan) decide procurar pelo marido sequestrado em Teerã, é agredida por homens muçulmanos, e depois abraçada por católicos. “Nós somos cristãos. Você está segura”, afirma uma mulher, resumindo com eficiência a ideologia da trama. Mais tarde, a polícia israelense entrará em cena, dotada de coragem e altruísmo, para interceder em favor do casal contra os malignos árabes e persas. Nowrasteh executa os recursos típicos do maniqueísmo cinematográfico: os vilões iranianos usam roupas escuras e possuem carrancas ameaçadoras, em oposição aos gestos calmos e tolerantes dos americanos de roupas claras; o interior do Irã possui o tradicional “filtro amarelo” para tornar as cidades abafadas, empoeiradas, pouco urbanizadas e “exóticas” aos olhos do ocidente; os cidadãos pelas ruas manifestam uma repulsa automática aos norte-americanos.

Caso este panfleto xenofóbico e racista efetuasse bom uso da linguagem cinematográfica, ao menos comprovaria o talento de um novo cineasta conservador. Ora, Sequestro Internacional transparece um sem-número de falhas e absurdos, incluindo dois capangas que param inexplicavelmente de atacar os heróis dentro de um café; o rosto fortemente agredido de Doug, porém sem qualquer marca na cena seguinte; o personagem ferido no abdômen, mas ostentando somente feridas na boca; vídeos que se ligam sozinhos no computador; o desaparecimento conveniente de policiais durante uma fuga; a ingenuidade incompreensível de uma funcionária do Serviço de Inteligência norte-americano; uma menção abrupta ao surto de coronavírus nos minutos finais (um problema inexistente na história até então) etc. Diante da complexa questão do extremismo religioso, Nowrasteh e o casal D’Souza elaboram um retrato assustador de árabes e persas, de natureza intrinsecamente homicida embora aparentem ser nossos amigos e vizinhos – caso do personagem Ramzi (Hal Ozsan). Entre tantas sequências politicamente indigestas, uma delas representa bem o ponto de vista dos autores: quando a polícia invade a casa de um homem iraniano residente nos Estados Unidos, a advogada grita que a invasão constitui um ato de islamofobia. Em questão de segundos, os oficiais encontram uma célula terrorista dentro da residência. “Estou sendo islamofóbico?”, comenta com um sorriso irônico o policial, clamando vitória pela descoberta. Sim, você está.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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