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Sinopse

Uma sucessão de vídeos live-streamings que deflagram a intimidade de chineses que se expõem na internet em busca de companhia de recompensas financeiras.

Crítica

Diferente de uma curadoria de material pré-existente na internet, o único dispositivo narrativo de Pretérito Imperfeito é a costura de vídeos provenientes de live-streamings, ou seja, de imagens gravadas e transmitidas simultaneamente, testemunhadas e selecionadas em tempo praticamente real. Portanto, para começo de conversa, o formato longa-metragem confere perenidade àquilo que foi concebido originalmente para ser consumido e não perdurar. A popularização desse tipo de atividade na China criou um mercado fortíssimo, algo que impulsiona diversos homens e mulheres a compartilhar mesmo futilidades diárias em busca de recompensas virtuais que adiante podem ser convertidas em monetização. Alguns apontamentos sobrevêm a várias frações pinçadas pela cineasta Shengze Zhu, dentre eles a objetificação do ordinário e a frivolidade transformada em produto rentável. Na toada do Big Brother, pessoas comuns abrem as portas de sua intimidade e/ou fomentam o interesse de um nicho de espectadores que bancam essa indústria crescente.

O primeiro plano, do guindaste fazendo movimento de 360 graus na construção, denota determinadas peculiaridades gritantes na China, exatamente as concernentes às transformações aceleradas das paisagens que, por conta dos ditames da modernidade e da urgência capitalista, perdem diariamente locais tradicionais para uma lógica aviltante de "atualização". A mutação dos cenários surge em outros momentos, como no trânsito de um sujeito por pilhas labirínticas de entulhos ou na transmissão da retroescavadeira dando conta do processo de demolição. Costumes chineses, ainda que preservadas as singularidades regionais, também são perceptíveis nas bordas dessas manifestações que oscilam entre o ridículo e o tragicômico. Há personagens recorrentes, principalmente revisitados na segunda metade do conjunto. Um deles é o dançarino que explora sua falta de talento como commodity, outro o sujeito infantilizado que discorre sobre a atrofia sexual de seu corpo que exibe sinais imberbes. Numa toada parecida, o homem de rosto deformado por um incêndio.

Entre as personagem mais acessadas, a trabalhadora de uma fábrica de cuecas se torna sintomática do contexto laboral chinês em Pretérito Imperfeito. Ela abre sua câmera durante o extenuante e repetitivo sistema de costura, pelo qual ganha em função da produtividade, ou seja, vale o quanto consegue gerar. Ancorada na voracidade do capitalismo que utiliza a celebridade como mercadoria, ela labuta dupla e concomitantemente, uma vez que os pagantes pelos vislumbres de sua tediosa rotina a retribuem com premiações simbólicas que se transformam efetivamente em benesses materiais. Numa das vezes em que essa jovem aparece diante dos espectadores, com um barulho considerável de equipamentos industriais ao fundo, está acompanhada da sobrinha fatigada pela falta do que fazer. É um retrato triste, esse da celebrização do dia a dia como um produto qualquer, comercializável em virtude da curiosidade alheia. Uma pena que o filme, sobretudo na sua metade final, se contente a repetir os postulados encorpados no começo e apenas reitere.

Pretérito Imperfeito expõe uma realidade, principalmente a relativa ao consumo contemporâneo de imagens em movimento, provenientes de diversos suportes, que coloca em xeque o próprio cinema como fonte de interesse. A fome pela realidade nua, crua e aparentemente destituída de artifícios – ainda que todo corpo consciente de ser filmado/mirado adquira uma natureza cênica –, afeta diretamente o tipo de narrativa a ser devorada, logo impacta frontalmente as instâncias de produção e posterior fruição audiovisual. Shengze Zhu, evitando intrometer-se para além da árdua pesquisa e do cerzimento habilidoso dos excertos, não insere essa tese abertamente, mas permite sua existência pela forma como articula o discurso do filme. Observando com distanciamento esse fenômeno que tende a transformar em espetáculo midiatizado, inclusive, o sofrimento alheio, a diretora faz um painel às vezes engraçado, noutras desalentador, da fome de notoriedade que acaba alimentando uma engrenagem vil com propensão à exploração da miserabilidade.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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